Sente-se um ar carregado, uma espécie de estresse coletivo. Algo não
muito bem definido sufoca a gente, criando mal-estar e desencontro.
Pensei que isto fosse específico do nosso Rio de Janeiro, onde o tal
“choque de ordem” do prefeito Paes por enquanto é sentido como uma
grande desordem na coisa mais básica de uma grande cidade, a mobilidade.
É uma verdadeira dor de cabeça ir ao trabalho e voltar para casa. Andar
na Avenida Rio Branco durante o dia virou aventura diária: há ônibus
nos dois sentidos da avenida, mas nem para todos os lugares da cidade.
Tenho colegas no Ibase que passaram a se deslocar quilômetros para
chegar ao trabalho, ou a tomar a sua condução de volta sem saber o que
vão encontrar e nem quando chegarão ao destino. Afinal, as vias
principais ficaram restritas e sempre engarrafadas na hora de pico.
Trens, então, são um desastre. É notícia todo dia o descalabro do
sistema da Supervia, onde viajar já é um ponto além do sufoco. No metrô,
na linha mais importante e única para a Zona Norte, as pessoas viajam
espremidas. E o governador Cabral ainda achou prioritário gastar uma
fortuna para estender a linha de Ipanema à Barra, ao invés de investir
tal dinheiro para transformar a Supervia em metrô de superfície,
servindo milhões de pessoas. Enfim, no detalhe dos transportes, o Rio de
Janeiro sufoca a cidadania de maneira a se temer asfixia completa.
Aliás, foi isto que aconteceu na última quinta-feira, com a greve dos
rodoviários. A mobilidade no Rio, porém, está longe de ser a única causa
do sufoco.
Mas nem é só no Rio que as pessoas sentem que de repente as coisas
estão fora do lugar e a vida ficou um tanto mais penosa. A mobilidade é
uma questão nacional, especialmente nas grandes cidades e suas
periferias. A segurança pública volta a perturbar em todos os sentidos.
As Polícias Militares, concebidas para reprimir, e não para garantir
cidadania, são parte do problema, aliás são uma herança da ditadura,
parte do Estado onde a nossa democracia ainda não chegou. Pior que
nossas polícias é a crescente intolerância no seio da própria sociedade,
com aumento criminoso e inaceitável de atos de justiça pelas próprias
mãos. Dá medo. E medo é uma espécie de câncer para a sociabilidade e a
convivialidade, tão fundamentais para a cidadania e a democracia. Agora,
com a Copa, até as Forças Armadas entram para garantir segurança, e no
lugar de segurança trazem um sufoco a mais. A “ocupação” das
cidades-sede dos jogos visa dar tranquilidade aos turistas e ao negócio
da FIFA, e não exatamente dar segurança à cidadania de todas e todos,
tanto que voltarão aos quartéis com o fim dos jogos.
As mazelas do cotidiano são muitas, e seria enfadonho ficar aqui
lembrando todas. Há porém algo mais sistêmico, estrutural, que está por
trás de tudo e alimenta o sufoco. Aparece como distanciamento, como algo
de outro mundo. É o sistema político, especialmente nossa representação
no Congresso, nas Assembleias, nas Câmaras Municipais, nos Partidos,
com sua capacidade de nada ver e perceber. Há, sim, o crescimento de um
perigoso descrédito na política e nos políticos em geral. Interesses
particulares, disputas de nacos do poder para ter acesso a privilégios,
subordinação do interesse público e cidadão a negociatas escusas,
desvios de recursos, enfim, a política cheira a coisa suja, que não dá
para acreditar e nem suportar. Na prática, o nosso sistema político não é
a nobre atividade de disputa dos sentidos e dos projetos de sociedade
que precisamos, dos caminhos para tanto, das políticas necessárias e das
melhores normas e leis que garantam direitos e cidadania de forma
universal. A pequenez que a política real exala, além de sufocante, pode
nos levar a matar a própria democracia.
O nosso sufocante cotidiano não parece ser do mesmo mundo dos
políticos. Eles estão lá e nós cá, com um fosso em crescimento no meio. A
vibrante mobilização pela democracia de trinta anos atrás, os grandes
movimentos e as grandes disputas, a nova Constituição, as eleições
diretas de presidentes, novas políticas, tudo vem perdendo vigor e
parece passado distante. Entramos numa democracia de baixa intensidade,
com políticos insensíveis aos clamores da cidadania nas ruas, praças e
comunidades deste nosso querido país. Até quando vamos suportar isto?
Estamos em ano eleitoral. Não vejo sinais de que algo vai acontecer
até as eleições, despertando a vontade de participar e decidir a parada,
além, é claro, de nos tirar das costas o sufoco. Nem sinais de que
projetos estão emergindo para mobilizar o imaginário e dar conta do
sentimento profundo de frustrações que sufocam. Os partidos, os
políticos e a própria política estão longe demais. Não é bom para a
cidadania e a democracia tal estado de coisas. A proposta de reforma
política é algo fora do mundo oficial. Todos estão mais preocupados em
como financiar as campanhas, pois a política que está aí virou disputa
de recursos das grandes empresas, especialmente as empreiteiras. Estas, e
não a cidadania, são as grandes votantes, por mais lamentável que isto
pode ser para a democracia. As propostas de reforma pipocam entre alguns
setores da sociedade civil, mas não se tem revelado capazes de mostrar
que a política institucional nos afasta do caminho da cidadania e da
democracia, motivando e angariando o apoio necessário para a mudança,
tão necessária no entanto.
Bem, antes da eleição temos a Copa do Mundo. Mais um sufoco? Ou
possibilidade de levantar a nossa autoestima? O certo é que não é a Copa
e seu resultado que vão dar a ponte para reaproximar a política do
cotidiano da cidadania. Precisamos voltar a construir trincheiras
cidadãs para reinventar a democracia. Como fazer isto extraindo, como
nos lembra Gramsci, o bom senso do senso difuso de insatisfações
reinante nos poros da sociedade e o transformando numa nova grande onda
de democratização? Este me parece o grande desafio para a democracia no
Brasil neste momento. Saberemos enfrentá-lo?
Cândido Grzybowski é sociólogo e diretor do Ibase.
Fonte: Canal Ibase.
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