Quando a multidão chegou na beira do São Francisco e subiu a ponte
que une/separa Juazeiro, Bahia, de Petrolina, Pernambuco, e começou a
cantar ‘Irá chegar um novo dia/ Um novo céu, uma nova terra, um novo
mar./ E nesse dia os oprimidos/ a uma só voz irão cantar’ (Axé – Irá
chegar, de Vera Lúcia), as lágrimas começaram a rolar. Era a caminhada
dos participantes do III ENA (Encontro Nacional de Agroecologia),
promovido pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), de 16 a 19 de
maio, em Juazeiro, Bahia. O tema do III ENA não podia ser mais
sugestivo: CUIDAR DA TERRA, ALIMENTAR A SAÚDE, CULTIVAR O FUTURO.
Segundo Paulo Petersen e Sílvio Gomes de Almeida, nas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) dos anos 1970/1980, três princípios de ação
podem ser encontrados nas práticas metodológicas que orientam atualmente
organizações do campo agroecológico: as CEBs organizavam suas ações a
partir das questões colocadas pelas famílias; as iniciativas das
famílias e as formas de cooperação local são voltadas para otimizar o
uso dos recursos locais para a construção de autonomia material e
conhecimento nas comunidades rurais; as CEBs enraizavam suas ações nas
práticas de convívio social pré-existentes nas comunidades, com plena
participação dos membros das comunidades nos processos de participação
de suas próprias realidades.
“Foi exatamente a partir da valorização dos ambientes locais de
organização sócio-política criados pelas CEBs que o ‘movimento
agroecológico’ no Brasil deu seus primeiros passos. Assim como os
principais movimentos do campo, grande parte das ONGs hoje dedicadas à
promoção da Agroecologia tiveram suas origens ligadas aos grupos
constituídos pelas CEBs, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra
(CPT)” (Paulo Petersen, Sílvio Gomes de Almeida, Rincões transformadores
– Trajetória e desafios do movimento agroecológico brasileiro,
março/2006).
Tinha, pois, todo sentido os romeiros cantarem ‘Um novo céu, uma nova
terra’. Estavam com um olho no futuro, outro olho no chão da vida e da
realidade. Foi assim que começou, cresceu o movimento agroecológico
brasileiro, hoje força inovadora e poderosa e um movimento cada vez mais
presente no Brasil.
A agroecologia é uma nova utopia real. Estamos em falta. Nas últimas
décadas, houve a luta pela Anistia, as Diretas-Já, a Constituinte, o
Orçamento Participativo, a campanha de 1989, a eleição de Lula, o Fome
Zero. Mobilizaram energias, encantaram a sociedade.
Maria Emília Pacheco, representante da ANA que coordenou a Mesa de
abertura e presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEA), fez a pergunta que orientou os participantes do
ENA: ‘Por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia?’ Ela própria
começou a responder: “Chegamos com as chuvas, os festejos de São João,
para falar, mostrar, trocar, cuidar da terra, alimentar a saúde e
cultivar o futuro. Somos duas mil pessoas, destas 70% são agricultores e
agricultoras e, destes, 50% são mulheres. Somos indígenas, agricultores
familiares, lutadores sociais, pescadores, quebradeiras de coco babaçu,
quilombolas, assentados e acampados, convidados, apoiadores, dizendo
que é preciso e urgente cuidar da terra, alimentar a saúde, cultivar o
futuro.”
As mulheres realizaram plenária debatendo a desigualdade de gênero e o
machismo e proclamando: “Sem Feminismo, não há agroecologia”. Aconteceu
a Feira de Saberes e Sabores, a troca de sementes e experiências. Nas
palavras de Noemi Krefta, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC):
“Não são nichos, mas experiências bastante visíveis, trazem o
enfrentamento organizado ao modelo tradicional, mas também se expressam
nas sementes resgatadas e partilhadas, nas plantas medicinais, nos
pequenos animais, nos alimentos saudáveis, na preservação da água, do
espaço e ambiente onde vivem, retomam a cultura de povos e etnias, seja
na música, na dança. É afirmação das identidades de cada espaço.”
Ao final do ENA, foi lida a Carta Política, entregue ao Ministro
Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República. O
ministro Gilberto falou: “Vocês são o anúncio de uma nova sociedade,
onde o ser vai ser mais importante que o ter. Vocês são a vanguarda e
nos mostram o futuro.” Disse que iria entregar a Carta para a presidenta
Dilma Rousseff e afirmou que “as propostas são positivas para a
sociedade que queremos implantar neste país”.
A agroecologia é um dos elementos fundantes de uma utopia real. Como
falei na abertura do Encontro, em nome da Comissão Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), utopia, porque é sonho de uma
sociedade com valores como a cooperação, a solidariedade. Utopia, porque
está sempre no horizonte. Quando se chega lá no horizonte, este se
alargou e, como diz o escritor uruguaio Eduardo Galeano, continua lá
longe à nossa espera, e nós em sua busca. Real, porque está na realidade
e no chão da vida. Não é apenas sonho longínquo, inalcançável.
Produzem-se, comercializam-se, comem-se alimentos saudáveis, sem veneno,
não transgênicos. Utopia real: sua construção está nas mãos dos que
plantam e produzem e nas mentes e corações dos lutadores/as,
sonhadores/as. Sonho, utopia, realidade, valores, alimentos, vida
fundem-se num novo tempo de esperança para a humanidade.
Ao som de Petrolina, Juazeiro de Luiz Gonzaga – Petrolina, Juazeiro,
Juazeiro, Petrolina/ Todas as duas eu acho uma coisa linda/ Eu gosto de
Juazeiro, e adoro Petrolina -, e animados no forró, na dança e no canto
de Sebastião Farinhada, de cantadores/as populares, dos jovens do
hip-hop, o III ENA foi troca, foi debate, foi festa, foi celebração.
Foi/está sendo utopia real.
Selvino Heck é assessor especial da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Fonte: Adital.
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