No último dia 03 de abril, quando amanheceu em uma aldeia
Guarani-Kaiowá, localizada no sul do Estado de Mato Grosso do Sul, a mãe
de três filhos abriu a porta de casa e paralisou ao ver o corpo frágil
de sua menina mais nova suspenso pelo lençol, amarrado à árvore por um
nó que parecia firme. No dia anterior, a garota havia completado 13
anos.
“A mãe disse que ela chegou da escola muito triste e reclamando de
dores na cabeça”, conta Otoniel, liderança Guarani-Kaiowá. “Depois que
todos foram dormir ela amarrou o lençol na árvore e se matou. Um primo
dela de 12 anos tinha se enforcado uma semana antes. E uns dias depois
que ela morreu outro adolescente, de 16 anos, também se suicidou na
mesma aldeia. Fui até lá para saber o que estava acontecendo”.
Os três enforcamentos em menos de duas semanas fazem parte de uma
estatística que no ano de 2013 ganhou contornos históricos. Foram
contabilizados 73 casos de suicídios entre os indígenas de Mato Grosso
do Sul. De acordo com registros do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), é o maior número em 28 anos. Os dados, apurados pelo Distrito
Sanitário Especial Indígena (DSEI/MS), constam no Relatório de Violência
Contra os Povos Indígenas no Brasil, a ser divulgado pelo Cimi em
junho.
Dos 73 indígenas mortos, 72 eram do povo Guarani-Kaiowá, a maioria
com idade entre 15 e 30 anos. Otoniel acredita que o motivo de tantos
jovens cometerem suicídio é a falta de perspectiva. “Não têm futuro, não
têm respeito, não têm trabalho e nem terra pra plantar e viver.
Escolhem morrer porque na verdade já estão mortos por dentro”.
O procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, do
Ministério Público Federal (MPF) em Dourados (MS), explica que as
oportunidades de trabalho para os indígenas são praticamente restritas a
atividades subalternas degradantes, como o corte da cana-de-açúcar.
“Temos escolas indígenas, mas o modelo educacional não foi construído
para a comunidade, existe apenas uma ‘casca indígena’, que não contempla
a inserção do jovem no processo produtivo”, completa.
“A discriminação e o ódio étnico, condutas incentivadas inclusive
pelos meios de comunicação, acentuam sobremaneira o problema dos
suicídios. Os indígenas são pintados como entraves, empecilhos,
obstáculos ao desenvolvimento. É como se a mídia passasse a mensagem ‘Se
você quer ficar bem, tire o índio do seu caminho’, ressalta o
procurador.
13 anos, 684 suicídios
No período de 1986 a 1997, foram registradas 244 mortes por suicídio
entre os Guarani-Kaiowá de MS, número que praticamente triplicou na
última década. De 2000 a 2013 foram 684 casos. “As atuais condições de
vida desses indígenas, que desembocam em estatísticas assombrosas de
violência, têm origem num processo histórico”, explica Marco Antonio
Delfino. “O que aconteceu foi uma transferência brutal, por parte da
União, de territórios indígenas para não índios”.
A transferência se deu, principalmente, pelo então Serviço de
Proteção ao Índio (SPI) que demarcou, entre 1915 e 1928, oito pequenas
reservas no sul do estado para onde diferentes povos indígenas foram
obrigados a migrar. “As reservas demarcadas serviam como um depósito
gigantesco de mão de obra a ser utilizada conforme os interesses
econômicos. Todo o processo de confinamento indígena teve como
finalidade sua utilização como mão de obra para os projetos agrícolas
implantados no país, desde a cultura da erva-mate até recentemente, com a
cana-de-açúcar”, completa o procurador.
O confinamento compulsório, com a sobreposição de aldeias distintas e
de dinâmicas político-religiosas peculiares, acirrou o conflito dentro
das reservas, alterando profundamente as formas de organização social,
econômica e cultural dos indígenas, o que resultou em índices alarmantes
de superpopulação, miséria e violência nestes espaços.
Definida pela vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat,
como “a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”, a
Reserva Indígena de Dourados é um dos exemplos mais contundentes desse
processo histórico. Encravada no perímetro urbano do município, na
Reserva vivem hoje mais de 13 mil indígenas em 3,6 hectares de terra. É a
maior densidade populacional entre todas as comunidades tradicionais do
país, e onde aconteceram 18 dos 73 casos de suicídio no estado em 2013.
“Hoje enfrentamos uma carência extremamente aguda de políticas
públicas. Desde 2009 existem discussões para implantar um Centro de
Atenção Psicossocial Indígena em Durados mas, por enquanto, não foi
adotada nenhuma medida concreta para sua construção”, diz Marco Antonio
Delfino. “A impressão que se tem é que as pessoas perderam o controle
sobre o monstro que criaram, que são essas reservas. Então, fica nesse
jogo de empurra-empurra, sempre com soluções paliativas. Precisamos
reconhecer e reparar os erros cometidos para que existam soluções
efetivas. O primeiro passo é demarcar os territórios usurpados dos
indígenas”, conclui o procurador.
Fonte: Adital.
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