Regulamentação de Cadastro Ambiental Rural (CAR) publicada na
semana passada mostra descompromisso do governo federal com a
recuperação florestal e poderá aumentar a confusão jurídica no campo.
Artigo de Raul do Valle, advogado e coordenador do Programa de Política e
Direito Socioambiental do ISA
Na semana passada, saiu a tão aguardada regulamentação do Cadastro
Ambiental Rural (CAR) e das linhas gerais dos Programas de Regularização
Ambiental (PRA), os dois principais instrumentos necessários à
implementação da nova legislação florestal federal (Lei Federal 12.651/12).
Elaborada sem a participação do movimento ambientalista ou do Conselho
Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) – mas consta que com a presença
frequente de representantes da Confederação Nacional da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA) – ela foi, no geral, previsível, embora tenha
trazido algumas surpresas bastante preocupantes e que não devem ser
deixadas de lado.
Em primeiro lugar, para não ficar apenas falando de problemas, há de
se reconhecer que, muito em função da publicidade que ganhou o caso, a
CNA não conseguiu emplacar sua demanda de cadastramento fracionado de
fazendas, o que ampliaria em muito a anistia já concedida pela nova lei,
sobretudo aos grandes e médios proprietários. Nesse aspecto, portanto, a
Instrução Normativa no 2 do Ministério do Meio Ambiente, que
regulamenta os procedimentos para inscrição do imóvel rural no CAR, foi
correta, embora não tenha feito mais do que seguir a definição de imóvel
rural que já é utilizada há décadas pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Também naufragou a tentativa de desonerar a recuperação de Reserva
Legal (RL) de grandes proprietários com base em interpretações absurdas
da aplicação da lei no tempo. A CNA pressionava para que a regra federal
adotasse sua interpretação, bastante particular, mas que já virou lei
em Goiás, de que a RL só teria começado a valer para biomas “não
florestais” (Cerrado, Caatinga, Pantanal e Pampas) de 1989 em diante.
Isso significaria não só um atentado à hermenêutica jurídica, mas
sobretudo uma pá de cal nas já poucas esperanças de recuperação de parte
do Cerrado que foi intensamente derrubado em São Paulo, Minas Gerais,
Mato Grosso do Sul e Goiás. Importante destacar que essa tentativa segue
em curso, inclusive consta de recente projeto de lei apresentado à assembleia legislativa paulista, mas, pelo menos em nível federal, não prosperou.
Implantação do CAR e do PRA
Dito isso, passemos à análise do que interessa: com o início da
implantação do CAR e do PRA estaríamos, finalmente, a caminho da
recuperação dos milhares de nascentes, riachos, ribeirões e encostas que
se encontram atualmente em processo de morte lenta por falta de
florestas protetoras? Infelizmente, embora alguns entendam o contrário,
não podemos ainda afirmar que sim, embora o desejássemos profundamente.
A primeira questão que salta aos olhos é como, até o momento, nenhuma
outra política de apoio à regularização ambiental, para além do CAR,
que é mero instrumento, foi pensada, alinhavada e estruturada. Imaginar
que a mera inscrição de imóveis rurais no CAR já seria suficiente para
que um número expressivo de produtores resolvesse, por conta própria,
começar a recuperar florestas, é, no mínimo, ingênuo. Se não houver, por
parte do governo federal e estados, um plano estruturado, com orçamento
disponível, para oferecer assistência técnica e apoio financeiro ao
produtor, nenhuma peça irá se movimentar no tabuleiro. Se não houver um
conjunto de incentivos econômicos que sinalizem ao produtor rural que é
viável e vantajoso recuperar florestas, não sairemos do zero. Mas, como
já era previsto, o pacote de medidas de regulamentação da lei florestal
nada trouxe a respeito (saiba mais).
Pelo contrário, chama a atenção como, ao criar o Programa Mais Ambiente Brasil, o Decreto Federal 8.235/14
sequer previu a existência de incentivos econômicos, embora propostas
concretas existam. O programa fala de “educação ambiental” (!) e cita
genericamente a necessidade de assistência técnica, que supostamente
seria disponibilizada pelo Ministério do Meio Ambiente, ou pelo menos a
suas expensas (art. 14). Como o MMA não tem nenhum órgão vinculado que
ofereça o serviço, e seu orçamento vem proporcionalmente diminuindo ao
longo dos últimos 10 anos, não é crível que desse mato saia algum
coelho.
Baixíssima prioridade
O que esse pacote deixa claro – ao não envolver nenhum outro órgão
federal com a agenda da regularização, não prever qualquer incentivo ou
medida de apoio efetiva e por haver demorado tanto a sair – é que essa
agenda é de baixíssima prioridade para o governo federal. Ele parece
entender que sua missão foi cumprida com a formalização do cadastro.
Seria menos desalentador se pelo menos ele fosse uma garantia de que
em breve teríamos um bom raio-x da situação ambiental de cada um dos
imóveis rurais do país, com o qual poderíamos pensar em políticas e
definir estratégias para a regularização. Porém, como já anunciamos
aqui, acabou vencendo a tese de que o CAR é “declaratório”, tal como
seria a declaração do imposto de renda. Isso significa, na prática, que o
produtor poderá fazer seu cadastro sem o apoio de um técnico
especializado, sem sequer fazer um levantamento de campo. Pela regra
federal, todo produtor é incentivado a entrar no site (www.car.gov.br)
e fazer diretamente seu cadastro, desenhando na tela de um computador
suas áreas consolidadas, de uso restrito, as encostas com mais de 45o de
inclinação etc. Como a lei é complexa, o sistema, por mais simplificado
que possa ser, também o é. Não dá para comparar a dificuldade que se
tem em somar notas de despesas médicas para fins de desconto do imposto
de renda com a de se desenhar com um mouse sobre uma imagem onde estão
exatamente suas encostas, seus rios, os remanescentes de vegetação
nativa em 2008, data definida pela nova lei para as anistias a
desmatamentos ilegais (a imagem é de 2012) etc.
Portanto, é de se
esperar que, seja por dificuldades – bastante compreensíveis – em
manejar o sistema ou compreender a lei, seja por deliberada intenção de
utilizar um sistema falho para “esconder” passivos (por má fé), as
informações apresentadas sejam bastante distorcidas.
Nesse sentido, quando o governo federal diz que o CAR é
“declaratório” está querendo dizer: “não meto minha mão no fogo pela
qualidade de suas informações”. Um bom começo, não? Combinado com o fato
de que os órgãos estaduais, que terão de analisar e possivelmente
refazer esses cadastros, não estão se preparando para assumir essa
tarefa hercúlea (veja a ótima avaliação realizada pela Conservação
Internacional nos estados da Amazônia), o que se pode esperar, neste
momento, é uma demora de décadas (e não de anos) até que uma parte
significativa dos cadastros tenha sido validada e tanto o produtor como a
sociedade saibam com um mínimo de segurança o que deve ou não ser
recuperado ou preservado.
Para se ter uma ideia, no âmbito do Observatório do Código Florestal
foram encaminhados questionários a órgãos estaduais de 17 estados. Dos
que responderam até o momento (SP, MG, PR, SC e CE), nenhum contratou
técnicos dedicados a analisar os cadastros que serão feitos e nenhum
apresentou uma estratégia deliberada de priorização nesse processo. Ou
seja, nenhum está se preparando para avalanche de informações provocada
pelo início do cadastramento. Só em São Paulo, já foram feitos 7.189
cadastros, com uma área de 1,1 milhão de hectares – nenhum foi validado.
Aí surge um paradoxo. Uma vez concluída a inserção de informações no
CAR, e tendo algum tipo de passivo a recuperar ou não, o produtor será
convidado a aderir ao PRA. Se ele tiver apenas áreas a consolidar (não
recuperar) – um pasto em uma encosta, por exemplo – estará tudo certo,
pelo menos para ele. Se, no entanto, houver algum passivo que tenha de
ser recuperado, ele deverá assinar um termo de compromisso, que terá
força de título executivo extrajudicial (poderá ser usado como prova
cabal da obrigação de recuperar em uma ação judicial). Esse compromisso,
no entanto, pela lógica do sistema, será assumido com base em
informações “declaratórias”. E se as informações “verdadeiras”, obtidas
após a validação pelo órgão ambiental, forem diferentes das
“declaratórias”? O que fazer com o compromisso assumido? É possível
alterar o termo para retificar as informações? O Decreto 8.235/14 diz
que ele pode ser alterado apenas quando houver comum acordo e desde que
em razão de “evolução tecnológica, caso fortuito ou força maior”. Seria a
análise dos dados por uma autoridade pública um caso fortuito?
Aliás, não foi nada fortuita a disposição do art.12 do referido
decreto, que determina que os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) em
execução, e que prevejam a recuperação de passivos segundo as
disposições da lei revogada, sejam modificados para diminuir a obrigação
de recuperação. Ou seja, se um fazendeiro assumiu com o Ministério
Público, em 2005, um compromisso de recuperar integralmente todas suas
matas ciliares em até 15 anos, agora poderá rever esse compromisso para
recuperar apenas parte, como permite a nova lei. Se o vizinho dele, no
entanto, assumiu um compromisso de fazê-lo em apenas sete anos, por
entender que era necessário estar mais rapidamente regularizado, mesmo
que isso lhe custasse mais, ele deve neste momento estar querendo pular
da ponte, pois já recuperou tudo e – pelo menos isso – o decreto nada
fala em arrancar as árvores já plantadas.
Mas tão grave quanto a sinalização passada à sociedade (“não faça
nada agora, enrole o quanto puder”) é o fato de que essa regra afronta
diretamente o entendimento predominante do Judiciário, e já pacificado
no Superior Tribunal de Justiça, de que a nova lei não pode retroagir
para atingir o ato jurídico perfeito – no caso, os TACs. São numerosas
as decisões nesse sentido e a edição do decreto em sentido contrário só
veio criar mais confusão jurídica. Comprar briga com o Judiciário para
garantir o “direito” de não recuperar áreas, mesmo em compromissos
assumidos antes da vigência da lei, mostra bem o compromisso do governo
federal com a restauração florestal no País.
Fonte: Instituto Socioambiental.
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