Encontrei com Marinalva Dantas, auditora fiscal do trabalho e uma das
mães da política de enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo, na
semana passada. Relembramos operações de fiscalização coordenadas por
ela que resultaram em libertações de trabalhadores que tive o triste
privilégio de cobrir.
“Leonardo, lembra aquele garoto para quem você deu a bola? Descobri
que era filho de um francês, daí os olhos claros. O pai foi embora após
engravidar a mãe dele, que trabalhava em um bordel.”
Puxa, faz tempo isso… Dezembro de 2001, cinco anos depois de 19
sem-terra serem mortos na “curva do S” da rodovia PA-150 pela polícia
militar do Estado do Pará, acompanhei um resgate de trabalhadores em
Eldorado dos Carajás. Dentre eles, Jonas.Cerqueiros perfuravam o chão, plantando mourões e passando arame por
quilômetros a fio sob o sol forte da Amazônia. O serviço era pesado:
dependendo do relevo, a cabeça ardia por dias até que se completasse um
quilômetro de cerca. O pequeno açude, turvo e sujo, servia para matar a
sede, cozinhar e tomar banho. Um perigo, pois a pele ficava impregnada
com o veneno borrifado para tratar o pasto. Dessa forma, a terra vai se
dividindo – não entre os cerqueiros, que continuarão sonhando com o dia
em que plantarão para si, mas em grandes pastos para os bois. Dentre os
trabalhadores, olhos claros e pele queimada, Jonas, de 14 anos.
Analfabeto, me contou que morava em uma favela no município com a
família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Trabalhava desde os
12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios –
até então, já tinha pego uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava
no serviço, também pagava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E
só. Segundo Jonas, a adolescência não era tão divertida assim:
“brincadeira lá é muito pouca.”
A lei é bem clara – nessa idade, permite ao jovem apenas a condição
de aprendiz, em uma escola destinada a esse fim. O trabalho que Jonas
realizava só seria permitido a partir de 18 anos e, ainda assim, sem as
condições insalubres a que estavam expostos os cerqueiros.
Seu padrasto era um dos “gatos” da fazenda. A mãe, a mulher
abandonada pelo viajante francês. Gato é como são chamados os
contratadores de serviços, que arregimentam pessoas e fazem a ponte
entre o empregador e os peões. Porém, isso não lhe garantiu nenhum
tratamento especial: teve que descontar do salário a bota que usava para
trabalhar. Perguntei para o padrasto se isso era justo. Ele, de pronto,
me respondeu que não considerava a venda do calçado para o próprio
filho errado e justificou: “como vou sustentar a minha mulher?”
O alojamento que Jonas dividia com os outros era feito de algumas
toras fincadas no chão, um pouco de palha e uma lona cobrindo tudo. O
sol transformava a casa improvisada em forno, encurtando, assim, a hora
do almoço. Redes faziam o papel de camas, penduradas aqui e ali para
embalar, entre um dia e outro de trabalho, os sonhos das pessoas. O de
Jonas, como vários outros rapazes da sua idade, era ser jogador de
futebol.
Presença garantida nos times dos mais velhos, participava de jogos e
campeonatos quando eles aconteciam. Queria ser profissional, mas apesar
de gostar dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo, preferia ficar lá
mesmo no Pará – quem sabe, algum dia, vestindo as camisas do Paysandu ou
do Remo. Por nunca ter ganho na vida um presente de aniversário, não
esperava nada naquele ano. Mas disse que pediria uma bola – se pudesse.
Centenas de crianças e jovens no Brasil abandonam a escola e
trabalham desde cedo para ajudar as finanças em casa ou mesmo se
sustentar. A situação melhorou muito nas últimas décadas, mas um grande
número delas ainda estão sujeitas a condições degradantes, como Jonas.
Catam latinhas de alumínio nos lixões das grandes cidades, ajudam a
família em colheitas de fazendas alheias. Em casos extremos, são
obrigados a trabalhar só por comida e impedidos de sair enquanto não
terminarem o serviço.
Muitos deles, como Jonas, queriam ser jogadores de futebol. Talvez
porque gostem do esporte como nós. Ou talvez porque vejam nele a
possibilidade de se verem livres daquela vida, com a bola carregando-os
para bem longe, longe o bastante para nunca mais voltar.
Fui até a cidade e comprei uma bola para ele. Podem dizer que eu
estava tentando comprar um terreno no céu, expiando a culpa de Adão ou
pagando de bom moço para os presentes. Sei que isso não mudaria em nada a
vida dele, mas dane-se. O sorriso valeu por todas as críticas que
recebi depois disso.
Jogos são usados para distrair, alienar e conduzir a plebe há muito
tempo. O pessoal que sangrava no Coliseu, em Roma, que o diga. Mesmo ao
longo de nossa história, o futebol foi utilizado com fins políticos. Não
faltam livros, teses e documentários para quem quiser se informar sobre
a ditadura militar e a Copa de 1970, na qual ganhamos o direito de
derreter a Jules Rimet.
Por isso, o futebol é uma idiotice? Não, o futebol é fantástico, é
sensacional, é indescritível. Imbecil é quem o usa politicamente.
Futebol é uma das melhores coisas já inventadas. A gente pode passar a
vida inteira tentando entendê-lo e, ainda assim, se surpreende.
Como na história de um escravo de 14 anos que ainda encontrava tempo para sonhar com futebol.
Espero que o Brasil ganhe a Copa.
Mas espero ainda mais que a bola tenha ajudado a rolar Jonas para fora daquela quase-existência. Pelo menos, nos sonhos.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política.
Fonte:Blog do Sakamoto.
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