Na consulta mundial sobre familia e sexualidade promovida
corajosamente pelo papa Francisco, sempre volta à tona certa compreensão da lei
natural e da natureza humana. Mais que oferecer uma solução, pretendemos
problematizar a questão.
Por uma parte pode-se afirmar que, sob
certos aspectos, a natureza humana é um dado singular, sempre
aberto, pois veio, junto com
outros seres, se formando ao longo do processo evolutivo há milhões de anos e
ainda não se encontra pronto. É um dado feito.
A partir desta constatação, importa
reconhecer que o ser humano é uma espécie que possui constantes
antropológicas que geram certo tipo
de comportamento singular, propriamente humano, caracterizado pela fala, pela
liberdade, pela criatividade, pela responsabilidade, pelo amor, pelo cuidado e
pela sua dimensão de abertura total. Sua
realidade concreta vem ainda dramatizada pelo fato de ser simultaneamente sapiens e demens. Somos capazes de amor
e de ódio, de guardiães da vida e de seus destruidores. Tal fato dramatiza
qualquer juízo ético que deve incorporar a tolerância e a misericórdia.
Por outra parte, a natureza
humana é histórica, porque é trabalhada pela liberdade humana que lhe dá
configurações culturais e a mantém aberta a novas formas futuras. Esse caráter
histórico faz com que nenhuma compreensão
compreenda tudo do ser humano. Só o compreende dentro de limites históricos.
Não se trata apenas de saber o que é dado mas, também, de constatar como o dado
é feito, refeito, entendido, e
reinterpretado. Ademais, cabe compreender o potencial e o utópico também
como pertencentes ao dado da natureza humana enquanto humana, fazendo que
sempre alimente novos sonhos e procure realizá-los. Portanto, possui
características de um sistema aberto, e não fechado, com vasta capacidade de
criação. Aplicando esta compreensão ao ser
humano: ele não é um projeto de médio ou de longo prazo, mas um projeto tendencialmente infinito. Por
isso, o ser humano sente que deve ir
além dele mesmo, deve se autossuperar e se autotranscender. Só assim será radicalmente
humano.
Dito numa palavra, o ser humano é um ser de
relações ilimitadas. Ele é, portanto, um em si relacionado.
Filosoficamente, é uma pessoa, e como tal um ser de relação com todas as
realidades possíveis.
As tendências e as paixões ou o seu capital de desejo e seu complexo
universo de impulsos não indicam, concretamente, nenhuma norma de ação concreta.
Esse conjunto de energias pede uma canalização para onde elas devem ser orientadas. É aqui que entra a liberdade humana e sua
capacidade de elaborar um projeto de vida.
Esse projeto de vida se orienta por valores. Esses valores são bons só
para mim ou o são para todos? Aqui vale a proposição de Kant: o que é bom para
mim deve poder ser universalizado. O projeto de vida põe em ação a liberdade (o
que fazer e como fazer) e a responsabilidade (quais são as consequências de meus
atos). Sem liberdade e responsabilidade não há ética humana em nenhum lugar do
mundo. A liberdade como capacidade de
autodeterminação e a responsabilidade como sentir que pode afetar a outros e
ser afetado são dados comuns da natureza humana.
No fundo, o sentido último da ética é fazermo-nos mais plenamente humanos
no sentido de fazermo-nos melhores a nós mesmos e de criar condições para que
outros sejam também melhores junto conosco.
Apliquemos esta visão da natureza humana
aos temas relativos à família e à sexualidade. Partimos do fato de que há algo
de comum: todos somos igualmente humanos. Há também há algo de
distinto: somos humanos no modo chinês, ianomâmi, mapuche e brasileiro. A
diferença não destrói a unidade de base. Apenas mostra a fecundidade desta
natureza coparticipada, pois ela só se dá na medida em que se realiza de
diferentes formas. E se realiza cada vez de forma limitada, por isso aberta para
os lados (reconhecendo outras realizações) e para o futuro (acolhendo outras
possíveis concretizações).
Nesta quadra nova da consciência
globalizada na qual temos acesso a tantas diferenças, importa entender as dois
dados como diferentes e complementares. Nenhum tem o direito de se impor aos
demais; devem existir como diferentes e
serem aceitos com tais.
Aplicadas estas reflexões ao tema da
família e da sexualidade, devemos dizer: importa respeitar as diferenças,
identificar os elementos comuns e aprender a conviver com distintas morais e
formas de família e de sexualidade. Mas sob uma condição: todas devem tratar
humanamente o ser humano, nunca fazê-lo objeto mas um ser autônomo com valor em
si mesmo. A partir daí estabelecer o diálogo, fazer as críticas e ver como
podemos todos nos tratar humanamente, com amor e respeito, de forma que possamos
sempre ser melhores. É o mínimo do
mínimo de uma possível ética humanitária, hoje
tão necessária.
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