A população de São Paulo sofre outra vez com o temor de
desabastecimento de água. Algumas cidades iniciaram o racionamento com o
fim de evitar um mal maior. As autoridades reconhecem a crise, anunciam
medidas emergenciais e, tal como xamãs da própria incompetência apostam
em incertas mudanças meteorológicas.
O cenário é fruto de uma sucessão de erros. Por alguns responde uma
população deseducada em sua relação com um bem tão precioso. Pela
maioria deles, porém, devem responder os administradores públicos, cujo
descaso com a gestão da água, a educação para seu uso, seus mananciais e
sistemas de captação, armazenagem, tratamento e distribuição parece
proposital, preparando, talvez, o discurso de que mais eficiência haverá
se o sistema for privatizado.
A escassez hídrica e o risco de racionamento são, portanto, a ponta
de um processo degenerado de gestão pública, a qual não concebe e nem
institui políticas públicas que tratam o acesso à água como um direito
fundamental, hipótese que decorre de interpretação lógico-sistêmica da
Constituição, uma vez que sem água é impossível o exercício de outros
direitos explicitamente tratados como fundamentais.
A crise hídrica começa pela leniência dos gestores públicos com a
sanha expansionista dos investidores responsáveis pela especulação
imobiliária. Em São Paulo, o meio ambiente é a segunda vítima; a
primeira é a ética exigível de todos, agentes públicos e privados. A
ocupação imobiliária desordenada em áreas sensíveis é promovida quase
sempre sem preocupação com os mananciais, estimulando o adensamento
populacional sem planejamento e com inegáveis impactos na qualidade da
água e na própria captação.
É também notável a falta de planejamento dos investimentos – do poder
público ou por meio de parcerias público-privadas – nos sistemas
hídricos. A população de determinadas regiões onde as sazonalidades
baixam o nível de precipitação seria facilmente atendida se, num sistema
de vasos comunicantes, existissem adutoras para permitir o
abastecimento a partir de áreas não sujeitas aos efeitos da estiagem. Só
em face da crise se pensa em agilizar os investimentos na estrutura de
gestão hídrica, como se a situação de risco fosse nova e não um fato que
se manifesta recorrentemente.
Educação
para o consumo e mesmo medidas punitivas para inibir o desperdício só
recebem atenção dos gestores quando a crise eclode, revelando um desvio
que tem sua origem na ética do explícito: é preciso que o risco e seus
graves efeitos se apresentem concretamente para que a sensibilidade dos
gestores se abra para práticas elementares. A educação da população para
bem usar recurso tão escasso e nobre deve fazer parte das políticas
públicas ininterruptas, e não ser apresentada como ação emergencial, em
meio à crise já instalada. Usar a estrutura de fiscalização pública para
– em concomitância com os processos educacionais – aplicar sanções aos
desperdiçadores é obrigação do bom gestor, que sabe da existência de
usuários perdulários cuja conduta, multiplicada, contribui para a crise.
Não basta apenas pensar em desestimular o consumo pelo aumento do
preço, como propõem alguns. A consciência do bom usuário pode ser
despertada pelo binômio educação-sanção.
Sem mudanças na gestão pública dos recursos hídricos, o discurso a
ser construído passa pela mercantilização da água, bem fundamental cujo
acesso não deve depender de equações econômico-financeiras voltadas
unicamente para o lucro. Não se pode admitir que somente a gestão
privada seria competente para proteger os mananciais e ao mesmo tempo
assegurar adequada e justa distribuição da água. Mas, é esse o discurso
que se insinua diante da incompetência da gestão pública dos recursos
hídricos, cujos efeitos nos atemorizam todos os anos.
Caleb Salomão é professor, escritor e advogado em Direito Tributário e Mestrado em Direito Constitucional
Fonte: Eco21.
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