Difícil imaginar um brasileiro que tenha passado pelas décadas de
1980 ou 1990 sem ouvir “Ilha, ilha do amor, Madagascar” ou “Canta, canta
Salvador, canta, canta. Canta meu amor”, sempre embaladas pelo som
forte dos tambores. Autor dessas e de muitas outras músicas populares, o
Olodum comemora, hoje (25), 35 anos. Criado como alternativa
carnavalesca dos negros em Salvador, o grupo virou expoente da cultura
afro-brasileira. Cultura que ajudou a divulgar em 35 países espalhados
por todos os continentes.
Até
os anos 70, os grandes blocos do carnaval da Bahia eram compostos
majoritariamente por brancos. Para garantir a festa da população negra e
enfrentar o racismo, em 1974, foi criado o Ilê Aiyê, que no último
carnaval recebeu homenagem pelos seus 40 anos.
Depois daquela iniciativa, outras comunidades produziram seus blocos,
como o Malê Debalê (1979) e o Muzenza (1981), muitas vezes reunindo
moradores de bairros específicos. No caso do Olodum, o
Maciel-Pelourinho.
O local – cujo nome faz referência à coluna de
pedra que servia para castigar negros escravizados – havia perdido
centralidade na economia de Salvador e, até os anos 80, sobrevivia
estigmatizado como espaço de “marginais”. Sobrados eram ocupados por
famílias pobres e por prostitutas. Por manterem o local, o fotógrafo
Pierre Verger chegou a afirmar que “devia se erguer no Pelourinho um
monumento às putas”. Ali, nos cortiços e pelas ladeiras do “Pelô”, como
chamavam os moradores, a negritude conseguiu se reafirmar por meio da
cultura.
Os
negros da Bahia fizeram da música, da religiosidade e da linguagem,
expressões de resistência. Reunindo todos esses elementos, o Olodum
surgiu como projeto cultural e político de luta contra o preconceito. O
presidente do grupo, João Jorge Rodrigues, destaca que o trabalho tinha
como objetivo tornar conhecida a história africana. “Nos primeiros
carnavais, fomos muito criticados porque falamos do Egito. Não entendiam
que o Egito fazia parte da África. Nós pesquisamos e mostramos que o
Egito é África, que Madagascar é África, que Etiópia é África.”
A
escolha carregava profundo caráter político de valorização das
tradições negras. “Nós queríamos mostrar que esses países africanos
produziram elementos fundamentais para a história, como a ciência e o
alfabeto”, diz. “Queríamos trazer à tona a dimensão da diversidade da
África, pois sempre houve uma visão hollywoodiana dos personagens da
história desses países: eles sempre foram retratados como brancos”,
completa o presidente do Olodum.
“Sei que o mar da história é agitado”, afirma o grupo em Canto ao Pescador,
cuja letra mostra outra matriz cultural do Olodum: a nordestina. As
referências se multiplicam, da figura do pescador à citação a Oloxum,
passando pelo cantor baiano Dorival Caymmi. Os sucessos fizeram com que
as letras do Olodum, palavra yorubá que significa “Deus dos Deuses”,
entrasse para o repertório do brasileiro.
Toda a preparação do
carnaval pretendia ser educativa. Os temas que seriam abordados eram
pesquisados, transformados em apostila e, depois, entregues aos
compositores e possíveis cantores para que se apropriassem dos fatos e
se identificassem com as histórias. Em Revolta Olodum, o grupo
faz referência à Revolta dos Búzios, também conhecida como Conjuração
Baiana, assim como à Guerra de Canudos e ao cangaço: “Pátria sertaneja,
independente / Antônio conselheiro, em Canudos presidente”.
Historiador
e integrante do Movimento Negro de Campina Grande, Jair Silva considera
que as ações dos blocos afro foram fundamentais para a afirmação da
identidade negra, no Brasil: “É um movimento que escreve história, que
tem esse compromisso de desvendar fatos que foram negados pela cultura
branca que ainda é hegemônica em nosso país.” De acordo com Jair, ao
falar da luta pela liberdade, o Olodum, que se assume como movimento
social, “criou autoestima para a comunidade negra da Bahia”.
“No
início, era uma coisa bem de cada comunidade, de ir para o ensaio do
bloco, inventar as danças, o cabelo, as roupas. O conteúdo das letras
sempre apontando para o negro como bonito, potente, inteligente”, conta a
antropóloga Goli Guerreiro, autora do livro A Trama dos Tambores – a Música Afro-Pop de Salvador.
De acordo com ela, a movimentação gerada pelos blocos, especialmente
pelo Olodum, foi “extraordinária”. “Vários territórios da cidade de
Salvador começaram a se antenar para afirmar uma negritude, que tem a
ver com autoestima, com a estética afro-baiana que ganhou uma altivez,
um gostar de ser o que é, de ser negro”.
A
movimentação musical e rítmica gerada nos anos 80 teve no samba-reggae
“a coroa da estética baiana”, diz Goli Guerreiro. Criado por músicos
baianos, entre eles Neguinho do Samba e Mestre Jackson, o ritmo se
tornou característico do Olodum. Para a antropóloga, essa criação
expressa a intensa circulação de informações existente entre os blocos
afro e deles com o que circulava no mundo da música, como o som de
Michael Jackson, de Fela Kuti e outros. “Essa troca de informações do
mundo atlântico permite que cada cidade faça sua combinação de
referências e invente algo próprio, local, mas que aponta para uma
dinâmica continental”, diz.
Marcado pela presença intensa da percussão composta por tambores de tipos diferentes e tocados por cerca de 200 músicos, o samba-reggae
mostrou tanta potencialidade que foi apropriado pelos blocos de trio
elétrico. Nos anos 90, bandas do que, mais tarde, viria a ser chamado
axé music, incluíram instrumentos harmônicos, como a guitarra, e
diminuíram a quantidade de percussionistas para que o ritmo parasse não
só nos trios, mas também nas “paradas de sucesso” das rádios e nas lojas
de discos.
O sucesso acabou fazendo com que blocos tradicionais também se adaptassem. Boa parte deles criou bandas para fazer shows,
introduziu a guitarra e buscou o mercado musical, onde as músicas do
Olodum e demais ganhavam projeção na voz de outros cantores. Expressiva
exceção é o tradicional Ilê Aiyê, que até hoje participa dos carnavais
com os tambores e os pés no chão.
Goli
avalia que a entrada no mercado e o fato de ter virado atração
turística trouxe mudanças nas letras do samba-reggae. “As músicas ficam
menos contundentes do ponto de vista ideológico, falam mais da alegria,
de forma geral”. Já o presidente do Olodum, João Jorge, explica que o
grupo buscou sustentabilidade para continuar existindo, adentrando, para
isso, também no mercado internacional. “No mercado Brasil, um grupo que
faz música, livro, que inspirou o funk e o rap nacional não é de nenhum significado, mas no exterior, sim.”
Ele
defende que o grupo não perdeu as raízes, a vinculação à luta por
igualdade e a ideologia do Pan-africanismo – expressa inclusive nas
cores adotadas pelo grupo: verde, vermelho, amarelo, preto e branco,
conhecidas como referências da luta contra o racismo. Destacando a
projeção internacional do Olodum, o reconhecimento e a parceria com 49
artistas internacionais, dentre os quais Paul Simon, Michael Jackson e
Alpha Blondy, ele afirma que o grupo é a “antena parabólica do
candomblé: tem os pés no chão e a cabeça no mundo”.
“Se o futuro nos pertence / Então temos que lutar”
O
chão do Olodum, diz João Jorge, continua a ser o Pelourinho. Desde
1983, quando foi criado o Projeto Rufar dos Tambores, o grupo oferece
aulas de percussão para moradores do bairro Maciel-Pelourinho. Desde
1984, quando o então bloco de carnaval tornou-se o Grupo Cultural
Olodum, desenvolve atividades de educação em diálogo com diversas
linguagens artísticas.
“Os projetos sociais dos blocos afro são
uma consequência natural deste desejo de mudar a realidade e, mais que
os projetos sociais, esses blocos oferecem um espaço positivo de
convívio para crianças e jovens negros, abrindo perspectivas para além
do cotidiano determinista de pobreza e exclusão ao qual as camadas
negras da população estão historicamente submetidos”, avalia a
professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Rita Maia.
Hoje
chamado Escola Criativa Olodum, o projeto que resultou na formação da
primeira Banda Mirim Olodum, envolveu, ao longo de 30 anos, cerca de 20
mil crianças e adolescentes, de 7 a 21 anos de idade, de acordo com a
coordenadora da escola, Cristina Calácio. Ela considera a escola “um
espaço pioneiro de participação da comunidade afrodescendente e inovador
por trabalhar com arte e educação de forma conjunta”.
Tendo
como critério a matrícula dos estudantes na rede municipal ou estadual
de ensino, a escola se propõe a “revelar grandezas, muito mais do que
simplesmente ensinar o toque do tambor. As atividades têm o objetivo de
potencializar as crianças e os adolescentes, para que a inclusão deles
na cidadania étnico cultural seja possibilitada”, avalia Cristina.
Além
da música, “o forte da instituição”, segundo a coordenadora, é que os
participantes do projeto também participam de seminários, oficinas de
danças afro e de canto coral, além de aulas de informática.
O
sucesso do projeto, para Cristina, deve-se ao fato de ser “uma escola
diferente, plugada com aquilo que os jovens gostam e com o que eles
estão interagindo no dia de hoje, que é a cultura, a tecnologia”.
Outro
projeto iniciado pelo grupo, em 1990, o Bando de Teatro Olodum encenou
contos africanos e histórias vinculadas aos negros e projetou atores
como Lázaro Ramos, Tânia Tôko e Jorge Washington Rodrigues, que
participaram da montagem teatral e do filme Ó Pai, Ó, que virou série de televisão.
Em
um dos intervalos dos ensaios das peças que o grupo apresenta, nesta
semana, no Festival do Teatro Brasileiro, em Rio Branco, Jorge Rodrigues
concedeu entrevista à Agência Brasil.
“Eu
comecei a fazer teatro no Calabar [bairro de Salvador] e fui mordido por
esse teatro de transformação que é uma ferramenta de luta contra o
preconceito racial, por igualdade. Quando vi no jornal a manchete:
‘Olodum monta companhia de teatro negra’, o projeto tinha a participação
do Márcio Meirelles, que já era um diretor consagrado, aí eu disse: 'É
nesse teatro que eu quero estar’.”
O ator, que só deixou de atuar
em uma das montagens do grupo, ao longo de 24 anos, quando teve que
sair da Bahia para acompanhar o nascimento da filha, diz que o projeto
se espalhou pelos bairros da capital baiana e pelo país, por meio dos
atores que foram formados pelo Olodum. Também no campo da música, as
influências dos projetos do Olodum são perceptíveis. Músicos que
cresceram ouvindo samba-reggae despontam no cenário cultural, como
Anderson Souza, Mariela Santiago e Afro Jhow.
Para Jorge
Washington Rodrigues, o desafio dessa proposta de produção cultural está
em não mudar a rota e fortalecer o caminho que vem sendo trilhado pelo
grupo. “Precisamos buscar esse teatro de afirmação, essa música de
afirmação, porque o mercado é tentador e nos tenta a todo momento.”
O
presidente da entidade, João Jorge, também avalia que é preciso
continuar a se reinventar, inovar e seguir como parte das lutas por
políticas públicas, educação e trabalho para negros. “O racismo é uma
doença. E o Brasil não superou isso, portanto, o Olodum é atual,
contemporâneo”, defende.
Fonte: Agência Brasil
CEPRO – Um
Projeto de Cidadania, Educação e Cultura em Rio das Ostras.
Alameda Casimiro de Abreu, 292, Bairro Nova
Esperança - centro
Rio das Ostras
Tel.: (22)
2771-8256 e Cel.:(22)9966-9436
E-mail: cepro.rj@gmail.com
Twitter: http://www.twitter.com/CEPRO_RJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário