domingo, 20 de abril de 2014

Podemos sorrir em meio ao espanto e ao medo?

Por Leonardo Boff

Na minha já longa trajetória teológica dois temas me foram desde o início sempre centrais, a partir dos anos 60 do século passado porque representam singularidades próprias do cristianismo: a concepção societária de Deus (Trindade) e a ideia da ressurreição na morte. Se deixássemos fora estes dois temas, não mudaria quase nada no cristianismo tradicional. Ele prega fundamentalmente o monoteismo (um só Deus) como se fôssemos judeus ou muçulmanos. No lugar da ressurreição preferiu o tema platônico da imortalidade da alma. É uma lastimável perda porque deixamos de professar algo singular, diria, quase exclusivo do cristianismo, carregado de jovialidade, de esperança e de um sentido inovador de vida.

Deus não é a solidão do uno, terror dos filósofos e dos teólogos. Ele é a comunhão dos três únicos que, por serem únicos, não são números mas um movimento dinâmico de relações entre diversos igualmente eternos e infinitos, relações tão íntimas e  entrelaçadas que impedem haja três deuses mas um só Deus-amor-comunhão-inter-retro-comunicação. Temos a ver com um monoteismo trinitário e não atrinitário ou pré-trinitário. Nisso nos distinguimos dos judeus e dos muçulmanos e de outras tradições monoteístas.
Dizer que Deus é comunhão de amor infinito e que dele derivam todas as coisas é permitir-nos entender o que a física quântica já há quase um século vem afirmando: tudo no universo é relação, entrelaçamento de todos com todos, constituindo uma rede intrincadíssima de conexões que formam o único e mesmo universo.

 Ele é, efetivamente, à imagem e semelhança do Criador, fonte de inter-relações infinitas entre diversos que vem sob a representação de Pai, Filho e  Espírito Santo. Essa concepção  tira o fundamento de todo e qualquer centralismo, monarquismo, autoritarismo e patriarcalismo que encontrava no único Deus e único Senhor sua justificação, como alguns teólogos críticos já o notaram. O Deus societário fornece, ao invés,  o suporte metafísico a todo tipo de socialidade, de participação e de democracia.

Mas como os pregadores, geralmente, não se referem à Trindade, mas somente a Deus (solitário e único) perde-se uma fonte de crítica, de criatividade e de transformações sociais na linha da democracia e da participação aberta e sem fim.      

Algo semelhante ocorre com o tema da ressurreição. Esta constitui o núcleo central do cristianismo, seu point d’honneur. O que reuniu a comunidade dos apóstolos depois da execução de Jesus de Nazaré na cruz (todos estavam voltando, desesperançados, para suas casas) foi o testemunho das mulheres dizendo: “Esse Jesus, que foi morto e sepultado, vive e ressuscitou”. A ressurreição não é uma espécie de reanimação de um cadáver como o de Lázaro que acabou, no final, morrendo como todos, mas a revelação do novissimus Adam  na expressão feliz de São Paulo: a irrupção do Adão definitivo, do ser humano novo, como se tivesse antecipado o fim bom de todo o processo da antropogênese e da cosmogênese. Portanto, uma revolução na evolução.


O cristianismo dos primórdios vivia desta fé na ressurreição resumida por São Paulo ao dizer:”Se Cristo não ressuscitou a nossa pregação é inconsistente e vã a nossa fé” (1Cor 15,14).  Faríamos então melhor pensar: ”Comamos e bebamos porque amanhã morreremos” (15,22). Mas se Jesus ressuscitou, tudo muda. Nós também vamos ressuscitar, pois ele é o primeiro entre muitos irmãos e irmãs, “as primícias dos que morreram” (1Cor 15,20). Em outras palavras, e isso vale contra todos os que nos dizem que somos seres-para-a-morte, que nós morremos, sim, mas morremos para ressuscitar, para dar um salto para o termo da evolução e antecipá-la para o aqui e  agora de nossa temporalidade.

Não conheço nenhuma mensagem mais esperançadora do que esta. Os cristãos deveriam anunciá-la e vivê-la em todas as partes. Mas a deixam para trás e ficam com o anúncio platônico da imortalidade da alma. Outros, como já observava ironicamente Nietzche, são tristes e macambúzios como se não houvesse redenção nem ressurreição. O papa Francisco diz que são “cristãos de quaresma sem a ressurreição”,   com “cara de funeral”, tão tristes como se fossem ao próprio enterro.

Quando alguém morre, chega para ele o fim do mundo. É nesse momento, na morte, que acontece a ressurreição: inaugura o tempo sem tempo, a eternidade bem-aventurada. 

Numa época como a nossa, de desagregação geral das relações sociais e de ameaças de devastação da vida em suas diferentes formas e até de risco de desaparecimento de nossa espécie humana, vale apostar nestas duas iluminações: Deus é comunhão de três que são relação e amor e que a vida não é destinada à morte pessoal e coletiva mas a mais vida ainda. Os cristãos apontam para uma antecipação desta aposta: o Crucificado que foi Transfigurado. Guarda os sinais de sua passagem dolorosa entre nós, as marcas da tortura e da crucificação, mas agora transfigurado no qual as potencialidades escondidas do humano se realizaram plenamente. Por isso o anunciamos como o ser novo entre nós. 

A Páscoa não quer celebrar outra coisa senão esta ridente realidade, que nos concede sorrir e olhar o futuro sem espanto e pessimismo.


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