As grandes cidades concentram os problemas da vida brasileira e dependem de uma força-tarefa para superá-los.
Os protestos de junho do ano passado deixaram claro que as metrópoles
brasileiras transformaram-se em um caldeirão de frustrações dos
habitantes e de demandas não realizadas pelo poder público. Transporte
ineficiente, violência incontrolável, sistema de saúde deficitário,
ausência de áreas de lazer e convivência. Morar em grandes cidades
tornou-se um inferno e dar as respostas corretas, um desafio inadiável
dos administradores em todos os níveis de poder.
Com a intenção de discutir os problemas e oferecer soluções que
alterem a realidade nas regiões metropolitanas, CartaCapital iniciou por
São Paulo, na segunda-feira 21, um ciclo de eventos da série Diálogos
Capitais intitulada “Metrópoles Brasileiras – O futuro planejado”. Até o
fim de 2014, mais quatro cidades receberão o seminário: Recife, Belo
Horizonte, Porto Alegre e Belém. “A vida nas metrópoles abre uma nova
perspectiva no processo civilizatório e oferece uma multiplicidade de
desafios de gestão que precisam ser mais bem compreendidos”, afirmou o
economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial da revista, na
abertura do evento.
Segundo Nádia Campeão, prefeita em exercício de São Paulo, os
desafios vão muito além dos dois ou três pontos que emergem em
pesquisas, entre eles mobilidade, segurança e saúde. “São Paulo é um
universo de demandas que precisam sempre ser atendidas, e agora, com o
novo Plano Diretor Estratégico, aprovado pela Câmara logo após a final
da Copa do Mundo, o poder público ganha um eixo de atuação”, acredita. O
tamanho do desafio é explicitado com a multiplicidade de polos de
desenvolvimento, que chegam a 120 em toda a cidade.
A aprovação do Plano Diretor, descreveu a prefeita em exercício,
envolveu 114 audiências públicas e a participação in loco de 25 mil
cidadãos, além das contribuições online e em documentos. Um dos avanços
foi a criação dos “conselhos de subprefeituras, conselhos setoriais e
conselho da cidade”.
Um dos pontos críticos da gestão, contrabalança, é o
fato de nenhuma prefeitura conseguir fazer nada sozinha. “É preciso a
integração dos esforços entre os municípios vizinhos, o estado e o
governo federal, senão as coisas não andam ou ficam desconectadas.” A
capital paulista, embora administrada pelo mesmo partido da presidenta
da República, ainda não conseguiu avançar na renegociação da dívida da
cidade, na adaptação dos critérios do Minha Casa Minha Vida ou mesmo na
articulação conjunta necessária para atender às promessas feitas ao
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
A falta de alinhamento entre as diversas instâncias de poder, atesta
Raquel Rolnik, urbanista e professora da USP, ameaça a vida nas grandes
cidades: o descasamento de agendas entre os diversos atores que causam
impacto nas cidades. Raquel listou algumas metrópoles que superaram a
fragmentação político-administrativa com a transformação da visão de
território. “Enquanto Tóquio e Frankfurt são administradas como Estados,
nosso pacto federativo é subdesenvolvido e baseado em interesses
privados, políticos ou de parcelas do território.”
A urbanista defendeu maior autonomia financeira para as cidades.
Segundo ela, a taxação do patrimônio por meio do IPTU é um instrumento
legítimo e acusou a mídia e os grandes grupos imobiliários de boicotarem
as iniciativas para a recuperação dos valores. Dessa forma, uma cidade
como São Paulo fica à mercê de doações voluntárias da União. “O governo
federal oferece, no entanto, uma máquina de construção de casas, canos,
vias, não uma estrutura de financiamento. Ou seja, a política é para
objetos inauguráveis, e não para uma urbanidade integrada.”
A atual Lei de Licitações também foi criticada. Haroldo Pinheiro,
presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, apontou a
legislação como um dos principais empecilhos à planificação das ações
urbanas. “Desde 1993, a Lei de Licitações excluiu o planejamento como
condição para projetos de construção, admitindo-se apenas o projeto
básico para se licitar.” Em nome da agilidade, o regime diferenciado de
contratação agrava ainda mais a situação, pois “entrega ao empreiteiro a
responsabilidade pelo projeto”. Desse modo, afirmou Pinheiro, o Estado
abre mão da responsabilidade pelo planejamento das cidades e repassa à
iniciativa privada, que tem o lucro como prioridade.
Esse tipo de PPP recebeu muitas críticas dos participantes da
principal mesa-redonda realizada pela manhã. Raquel a descreveu como
“extremamente perigosa”. “As PPPs representam a privatização total do
espaço urbano.”
O modelo de consulta pública baseada em audiências e em
representantes eleitos também oferece obstáculo para a gestão pública,
pelo fato de nem sempre conseguir captar os anseios da sociedade.
Encontrar maneiras de compreender as demandas de movimentos
policêntricos e sem um foco claramente identificável, a exemplo das
manifestações de junho do ano passado, é um desafio próprio do século
XXI e deve ser tratado como tal. Assim observou Patricia Ellen da Silva,
sócia-diretora da McKinsey América Latina. Durante sua exposição, a
consultora procurou demonstrar que tecnologias podem ser excelentes
aliadas para a formulação de políticas públicas em grandes centros
urbanos. Segundo Patricia Ellen, há 95 milhões de brasileiros conectados
em redes sociais e 76 milhões apenas no Facebook. Os usuários são de
todas as classes sociais. Desse total, 34% publicam dados sobre
organizações de todos os perfis e influenciam o fluxo de informações nas
redes.
O engajamento digital muda o comportamento e a expectativa dos
cidadãos, que passam a exigir mais honestidade e transparência das
organizações públicas e privadas. As mídias sociais foram as
protagonistas das manifestações de junho, ao atingir mais de 1,8 milhão
de mensagens por dia naquele mês, com 75% de mensagens positivas ou
neutras sobre os atos. “Ali perdemos uma chance incrível de entender o
que estava acontecendo e abrir diálogo de forma construtiva”, opina a
consultora. Sem propor qualquer tipo de monitoramento ou controle
individualizado, a especialista vê os avanços da mobilidade digital como
um instrumento valioso para o planejamento urbano. “Não quero saber o
que um determinado indivíduo está fazendo, mas quais os grandes fluxos
de pessoas e o que estão apontando como dilemas.” De acordo com ela, os
dados estão disponíveis a partir do acompanhamento anônimo dos
celulares, entre outras ferramentas.
A tecnologia poderia ajudar a monitorar em tempo real, descreve a
diretora da McKinsey, casos de dengue e direcionar a ação pública de
forma mais eficaz no território. “Isso já é realidade em outros temas,
como em APPs que monitoram trânsito ou bares e restaurantes”, compara.
Algumas prefeituras têm avançado na relação com a sociedade, diz, entre
elas a do Recife, onde um grupo de jovens empreendedores criou a rede
social Colab, que permite a cidadãos conectados apontarem problemas na
cidade, avaliarem serviços públicos e proporem soluções. A tecnologia
pode de fato conectar a sociedade ao poder público. Hoje, quatro
prefeituras adotaram essa fórmula como canal oficial com a população:
Curitiba e Foz do Iguaçu, no Paraná, Rondonópolis, em Mato Grosso, e
Teresina, no Piauí. Em junho, a solução venceu o prêmio internacional
AppMyCity como “melhor aplicativo urbano do mundo”. O diferencial do
Colab é que ele promove o diálogo, ativa a inteligência coletiva das
cidades.
Fonte: Carta Capital.
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