Como China e Índia, Brasil tem plenas condições de gerar
eletricidade a partir do sol e ventos. Itamaraty erra nas negociações
sobre clima.
É nefasta a defesa, por parte da diplomacia brasileira, de que nas
negociações climáticas, os direitos de emissão de gases de efeito estufa
devem contabilizar o que cada país lançou na atmosfera desde 1850. Em
primeiro lugar, não se justifica responsabilizar alguém por uma ação
cujos impactos não eram conhecidos à época em que foi tomada. O German
Advisory Council on Global Change também preconiza uma contabilidade das
emissões per capita, levando em conta o passado, mas parte de 1990,
momento em que a comunidade científica internacional tornou públicas as
evidências de que os gases de efeito estufa eram destrutivos para o
sistema climático e de origem antrópica [1]. Além de ser eticamente
indefensável, voltar a 1850 é inviabilizar qualquer acordo, pela
carência de informações sobre o que se emitia à época.
É preciso reconhecer, claro, a imensa desigualdade na ocupação do
espaço carbono global: segundo o último relatório do IPCC, as emissões
médias per capita dos países de baixa renda são nove vezes menores que
as dos países mais ricos. É, em última análise, sobre a base dessa
constatação que se estabeleceu o Protocolo de Kyoto, o único compromisso
legalmente vinculante nas negociações climáticas. O problema é que há
uma incontornável armadilha em seu arcabouço: ele só atribui metas
obrigatórias de redução aos países mais ricos.
A própria ideia de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, que
dá conteúdo ao Protocolo de Kyoto, contém uma bomba de efeito retardado
que explodiu junto com a ascensão da China a primeiro emissor global. É
um dispositivo segundo o qual os países que, ao longo da história,
emitiram menos teriam agora o direito de recuperar a perda. É um pouco
como se dissessem: chegou a nossa vez. Os resultados só podem ser
catastróficos não só globalmente, mas para os próprios países que
insistem nesta rota.
Até poucos anos atrás, essa postura poderia ser justificada pela
ausência de alternativas. Ampliar a exploração e o uso de fósseis era,
de fato, para a maior parte dos países em desenvolvimento, o meio mais
barato para acesso à energia. Mas os efeitos combinados da revolução
digital e dos ganhos de produtividade das renováveis (sobretudo solar e
eólica) mudam radicalmente esse panorama.
Ray Kurzweil, importante inventor e inovador americano, mostra, no
caso da energia solar, que seu crescimento tem sido exponencial. Nos
últimos 20 anos, a oferta dobra a cada dois anos. Dobrando mais oito
vezes ao longo dos próximos 16 anos, 100% da oferta de energia do
planeta poderia ser solar. Ao mesmo tempo, tudo indica que o grande
limite das fontes renováveis modernas – a intermitência –, está em vias
de ser superado, com a melhoria das condições de armazenamento da
energia em baterias.
É o que mostra um relatório recente do Rocky Mountain Institute, com o
sugestivo título de Grid Defection, algo como o Abandono da Rede. As
formas convencionais de geração de energia vão-se tornando
economicamente inviáveis. E o que está em jogo não são apenas as usinas
movidas a carvão, mas o próprio conceito de geração centralizada com
distribuição subsequente (hub-and-spoke, na expressão em inglês).
A organização financeira global UBS prevê que, ainda nesta década, as
contas de energia elétrica na Itália, na Alemanha e na Espanha cairão
de 20% a 30%, como resultado do aumento da autoprodução de energia. As
empresas convencionais de energia na Europa devem perder 50% de seus
lucros antes de 2020.
Uma internet de energia
O mais importante é que essas fontes renováveis avançam juntamente
com o aumento da conexão em rede. Trabalho recente de consultores da
McKinsey mostra que os sistemas centralizados de obtenção e posterior
distribuição de energia, implantados de forma generalizada desde Thomas
Edison, serão substituídos por redes descentralizadas a partir de
dispositivos altamente conectados entre si: uma internet da energia.
Estimular a generalização desse avanço é o maior desafio das duas
próximas conferências do clima. lutar para garantir direitos de emissão
aos países em desenvolvimento é insistir num caminho que os afasta dessa
fascinante conquista civilizacional, resultante do crescimento da
autoprodução de energia sobre bases renováveis. Dois estudos recentes do
BNDES [2] mostram que China e Índia estão se preparando para essa
mudança, com grandes empresas de atuação global em solar e eólica. Já o
Brasil insiste na hidroeletricidade e no petróleo e condena-se a ser
importador das tecnologias que hoje estão revolucionando as renováveis.
Com o olho em 1850.
[1] Acesse relatório aqui.
Ricardo Abramovay é professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP.
Fonte:Outras Palavras.
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