“As mudanças aprovadas no novo Código Florestal atacam dois dos
biomas brasileiros mais degradados pelo homem: a Caatinga e o Cerrado”,
aponta o biólogo Elvio Sérgio Medeiros.
A aprovação da ementa
do Código Florestal que põe fim às Áreas de Preservação Permanente –
APPs em rios intermitentes “significa um retrocesso na legislação
ambiental brasileira e representa uma ameaça para a integridade
ecológica dos rios de forma geral, principalmente para o bioma da
Caatinga, que concentra grande parte dos rios intermitentes
brasileiros”, assinala o biólogo Elvio Sérgio Medeiros na entrevista a
seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a redução das
APPs, além de contribuir para a degradação ambiental, agravará “o quadro
socioeconômico da região, por contribuir com o aumento da escassez de
água”.
Para ele, as mudanças propostas no texto do Código
Florestal representam a “conjuntura econômica brasileira atual, onde a
pressão por áreas cultiváveis, necessidade de lucro imediato e respostas
a curto prazo para os mercados são prioridade em detrimento a opções
menos imediatistas e mais sustentáveis, que permitiriam a manutenção a
longo prazo dos recursos naturais e a disponibilização dos seus
benefícios para gerações futuras”. E dispara: “O novo Código Florestal é
um ataque e uma afronta aos biomas brasileiros, principalmente os que
mais precisam de preservação, como o Cerrado e Caatinga”.
Elvio
Medeiros é graduado e mestre em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal da Paraíba. Cursou o doutorado em Ciência Ambiental pela
Griffith University, Austrália. Atualmente leciona Ecologia na
Universidade Estadual da Paraíba.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a especificidade dos rios intermitentes?
Elvio Sérgio Medeiros -
Os rios intermitentes representam cursos de água corrente que cessam
seu fluxo durante um ou mais períodos do ciclo hidrológico. De forma
geral podem ser classificados como temporários ou efêmeros. No primeiro
caso, os rios apresentam fluxo de água superficial durante vários meses,
enquanto que no segundo o fluxo de água é normalmente limitado a alguns
dias ou semanas. Em anos muito úmidos, rios efêmeros podem se tornar
temporários e, em períodos de seca, rios temporários podem se tornar
efêmeros. Essa variação hidrológica extrema é uma característica natural
desses sistemas e tem sido reconhecida como o principal elemento
influenciando a estrutura das comunidades aquáticas e o funcionamento
geral dos rios intermitentes. Essas características tornam esses rios
muito sensíveis à variação climática, funcionando como preditores das
respostas do meio ambiente ao aquecimento climático global.
Os
rios intermitentes podem representar cursos de água de pequena ordem, ou
seja, os riachos de cabeceira. Tradicionalmente, porém, têm sido
associados a regiões secas, tanto temperadas, como é o caso nos desertos
dos Estados Unidos e da Espanha, quanto em zonas tropicas, como no
norte da Austrália, África e no semiárido brasileiro. No semiárido do
Brasil, estes rios também estão associados a outros ambientes como
lagoas temporárias naturais e os reservatórios construídos pelo homem.
Os
rios intermitentes do Brasil fazem parte da paisagem da Caatinga e do
dia a dia do homem do Nordeste, servindo como fonte de água, áreas de
recreação, cultivo de vegetais e criação de animais. O sertanejo
apresenta estratégias de sobrevivência durante os períodos de estiagem,
que são resultado direto de suas percepções sobre as variações no fluxo
de água desses rios. Estes ambientes fazem parte da cultura do sertanejo
sendo citados em sua produção artística e por grandes escritores como
Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego e
Guimarães Rosa.
IHU On-Line – Como a legislação ambiental
vigente aborda a preservação de Áreas de Preservação Permanente – APPs e
matas ciliares nas margens dos rios intermitentes e perenes?
Elvio Sérgio Medeiros -
A legislação atual não trata especificamente de diferenças entre cursos
temporários ou perenes, mas rios intermitentes são mencionados e
associados a nascentes. Para a legislação vigente, as florestas e demais
formas de vegetação reconhecidas de utilidade às terras que revestem
são consideradas APPs. É interessante notar que a concessão feita para
desmatamento em rios intermitentes vai de encontro a vários artigos e
parágrafos do Código Florestal que descrevem a proteção de florestas e
demais formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios ou outros
cursos d’água. O próprio entendimento de APP fica comprometido porque
ele inclui áreas cobertas (ou não) por vegetação, que tenham a função de
preservar os recursos hídricos, a paisagem ambiental, sua
biodiversidade e fluxo gênico, além de manter aspectos geomorfológicos
associados à estabilidade geológica e solo. Matas ciliares de rios
intermitentes contribuem com todas essas funções.
IHU
On-Line – Como avalia a aprovação da ementa do Código Florestal, que põe
fim às APPs em rios intermitentes? A que atribuiu a aprovação desta
ementa?
Elvio Sérgio Medeiros - Essa
mudança significa um retrocesso na legislação ambiental brasileira e
representa uma ameaça para a integridade ecológica dos rios de forma
geral (intermitentes ou não), e principalmente para o bioma da Caatinga,
que concentra grande parte dos rios intermitentes brasileiros.
Representa a indiferença e desrespeito do governo brasileiro com o meio
ambiente e sua preservação.
IHU On-Line – Quais as
implicações da redução de APPs e matas ciliares para estes rios e o
entorno? Esta medida atinge que percentual dos rios brasileiros?
Elvio Sérgio Medeiros -
Cerca de 40% da superfície terrestre do planeta é representada por
áreas secas e essa proporção vem aumentando em função da expansão dos
processos de desertificação causados por mudanças climáticas globais e
destruição de florestas. No Brasil, a zona de clima semiárido, que
representa o domínio dos rios intermitentes, abriga cerca de 20 milhões
de brasileiros. Essa zona participa com cerca de 18% do total da área
correspondente às bacias hidrográficas do Brasil, sendo sua maioria
composta por cursos de água intermitentes. A redução das APPs e matas
ciliares para estes rios vem contribuir para a degradação ambiental e, a
médio e longo prazos, vem agravar o quadro socioeconômico da região,
por contribuir com o aumento da escassez de água.
As implicações
da redução ou remoção das matas ciliares para os rios intermitentes são
múltiplas. Do ponto de vista geomorfológico, estas matas, através de
suas raízes e cobertura do solo, contribuem para a sustentação do solo
marginal diminuindo o assoreamento. Com relação à biodiversidade,
estudos indicam que a mata ciliar contribui com estruturas subaquáticas,
como galhos, troncos e folhas para o leito do rio, que servem de abrigo
e alimento para a fauna e flora aquáticas. Por sua vez, esses sustentam
outros organismos aquáticos, como peixes, anfíbios e animais terrestres
como aves e pequenos mamíferos, que vêm se alimentar desses animais
maiores. Estudos sobre os nutrientes que têm origem na vegetação ciliar
mostram que uma parcela importante do carbono de origem ripária entra na
rede alimentar aquática e sustenta parte de produção primária e
secundária nos rios intermitentes. Além disso, itens alimentares
originados na vegetação ciliar, como sementes e insetos terrestres, são
consumidos diretamente por peixes e anfíbios. Portanto, é evidente que a
destruição ou alteração da mata ciliar terá um efeito importante no
funcionamento desses sistemas com consequências para a diversidade
aquática.
IHU On-Line – A maioria dos rios intermitentes
está no Nordeste. Em sua avaliação, a aprovação desta ementa tem alguma
relação com os projetos desenvolvimentistas do governo na região?
Elvio Sérgio Medeiros -
Além das implicações para as políticas de desenvolvimento para o
Nordeste, este novo texto do Código Florestal representa a conjuntura
econômica brasileira atual, onde a pressão por áreas cultiváveis,
necessidade de lucro imediato e respostas a curto prazo para os mercados
são prioridade em detrimento a opções menos imediatistas e mais
sustentáveis, que permitiriam a manutenção a longo prazo dos recursos
naturais e a disponibilização dos seus benefícios para gerações futuras.
IHU
On-Line – A falta de proteção nos rios intermitentes pode causar
impacto nos rios perenes? Alguns pesquisadores mencionam possíveis
prejuízos e comprometimento da rede hidroviária. É possível?
Elvio Sérgio Medeiros -
Sim. Os rios intermitentes são parte de bacias hidrográficas do
Nordeste e também da maioria dos sistemas aquáticos continentais. Seu
comprometimento pode alterar, a médio e longo prazos, a dinâmica
hidrológica e geomorfológica da bacia como um todo, agravando
assoreamento, qualidade da água, dinâmica de nutrientes, limites de
variação hidrográfica, entre outros fatores.
IHU On-Line –
Qual é a situação dos rios intermitentes do semiárido e da Caatinga?
Qual a importância deles na preservação dos ecossistemas?
Elvio Sérgio Medeiros -
Os rios intermitentes do semiárido brasileiro são importantes do ponto
de vista econômico (como fonte de água e alimento), científico e
cultural. Eles fazem parte do ciclo global da água e são ainda sítios de
biodiversidade e endemismos.
Dentre os elementos mais importantes
para a conservação dos rios intermitentes destaca-se a necessidade de
seu reconhecimento como sítios importantes de biodiversidade e que essa
biodiversidade está associada aos padrões naturais de variação no fluxo
de água. Sem o entendimento de como esses processos atuam na fauna
aquática, e com o agravamento do risco ambiental desses rios legitimado
pelo governo brasileiro, as estratégias de conservação para o bioma
Caatinga serão pouco efetivas.
Muito embora importantes medidas
para a conservação do bioma da Caatinga têm sido tomadas, como a criação
de áreas de preservação e delineamento de áreas prioritárias para
conservação e para pesquisas científicas, o comprometimento das matas
ciliares acontece em detrimento ao argumento de que a conservação dos
rios intermitentes deve ser ampliada devido à natureza seca do ambiente
ao seu entorno.
Estudos enfatizam a necessidade de cinco passos
fundamentais a serem considerados para os planos de conservação no
semiárido: (1) que estes planos sejam estabelecidos com base no
conhecimento científico sobre a estrutura e funcionamento dos rios
intermitentes e no papel das variações hidrológicas na biodiversidade
aquática e do seu entorno; (2) que áreas de conservação incluam bacias
de rios intermitentes importantes, baseado não apenas na diversidade de
espécies, mas também nos processos ecológicos que sustentam essas
espécies; (3) que os processos sustentando a biodiversidade sejam
mantidos em múltiplas escalas da paisagem, e não apenas em escala local;
(4) que a integridade natural da zona ripária (e das matas ciliares)
sejam mantidas e restauradas; e (5) que, tendo em vista a história de
ocupação humana no semiárido, as configurações dos ecossistemas e suas
interações com os sistemas sociais humanos devem também ser levados em
consideração nos planos de manejo para a região.
IHU On-Line – Quais são hoje os fatores que mais contribuem para a degradação dos rios intermitentes?
Elvio Sérgio Medeiros -
Principalmente a partir do século passado, a expansão dos projetos de
manejo de águas no Nordeste tem representado uma ameaça à integridade do
fluxo de água natural desses sistemas e, consequentemente, sua rica
fauna e flora. A tentativa de se mitigar possíveis danos causados por
esses projetos é difícil tendo em vista o limitado conhecimento
científico sobre os processos ecológicos atuando nas comunidades desses
riachos.
A remoção da mata ciliar ou sua substituição por espécies
exóticas (como a algaroba, por exemplo) já são ameaças antigas à
integridade biológica de rios intermitentes no semiárido do Brasil. A
nossa legislação agora apenas institucionaliza e fornece a legitimidade
para essas práticas. A remoção e alteração da vegetação natural no
semiárido não estão limitadas apenas às matas ciliares. Mudanças nas
condições climáticas locais e intensificação dos processos de
desertificação têm sido causados e/ou agravados pela ocupação humana,
resultando na intensificação das condições de aridez e no aumento do
déficit hídrico.
Estudos realizados em outros países, como a
Austrália, reconhecem a importâncias das matas ciliares em rios de áreas
secas e observam que mudanças na vegetação ripária estão associadas a
mudanças deletérias para o funcionamento dos ecossistemas aquáticos, bem
com estão associadas à diminuição da saúde dos rios e a algumas
mudanças na dinâmica do carbono, elemento fundamental para a produção e
manutenção dos sistemas vivos.
No Brasil, hoje inúmeras atividades
humanas e práticas de uso da terra vêm alterando a integridade das
matas ciliares em rios intermitentes, como a introdução de espécies
exóticas de plantas, mudanças no regime de fogo e queimadas artificiais e
remoção da mata ripária. Além disso, atividades como a extração de
areia e minério, poluição por pesticidas e esgotos, e práticas
inadequadas de irrigação também podem ser importantes para a alteração
da vegetação ciliar dos rios intermitentes bem como seu regime natural
de fluxo de água. Em conjunto, essas atividades aumentam a ameaça de
desertificação e salinização do solo.
IHU On-Line – Além desta ementa do Código Florestal, que outros equívocos percebe no texto?
Elvio Sérgio Medeiros -
As mudanças aprovadas no novo Código Florestal atacam dois dos biomas
brasileiros mais degradados pelo homem: a Caatinga e o Cerrado. O
Cerrado é um “hotspot” da biodiversidade mundial, mas apresenta amplas
áreas desmatadas e vem sofrendo processo de degradação. Esse bioma é
chamado de “caixa d’água do Brasil”, porque por ele passam ou nascem
grandes sistemas hidrográficos brasileiros, como o Rio São Francisco, e
bacias do Paraná e Tocantins. Apesar disso, o novo texto do Código
diminui restrições para o desmatamento de APPs em algumas áreas de
Cerrado.
O novo Código Florestal é um ataque e uma afronta aos
biomas brasileiros, principalmente os que mais precisam de preservação,
como o Cerrado e Caatinga. A Caatinga é o único bioma que ocorre apenas
em solo nacional, e as políticas atuais contribuem para sua destruição.
Fonte: IHU-Online.
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