Como é difícil para a democracia brasileira enfrentar o poder dos
grandes proprietários de terra! Eles podem não ser mais os “Donos do
Poder”, dissecado pela monumental obra de Raymundo Faoro, mas têm ainda
um real poder de veto político para impedir mudanças que afetam o seu
interesse. Apesar da longa lista de crimes sociais e ambientais, de
ontem e de hoje, são os latifundiários que estão ditando as condições do
Código Florestal possível para o Brasil. No lugar de um código de
proteção de um dos patrimônios naturais maiores e mais diversos do
planeta, estamos diante de proprietários de terras que querem continuar
com suas práticas predatórias.
Para entender o poder do latifundiário, nunca é demais lembrar que
eles são uma espécie de certidão de nascimento do Brasil como país.
Latifúndio e escravidão foram os dois lados da estrutura social que se
montou na esteira da conquista e colonização do território, dizimando
índios e eventuais posseiros pelo caminho. O desmatamento em grande
escala, sem limites, foi a base de sua instalação e matriz do rural
brasileiro. A legalização de terras conquistadas se fez e se faz pela
concessão de títulos pelo Estado, pela vista grossa e posterior
acomodação de autoridades ou, na falta de tudo, pela falsificação de
documentos (a conhecida grilagem de terras). Os latifúndios impuseram um
rural de exclusões e violências sobre trabalhadores e suas famílias,
sobre os pequenos agricultores familiares nos seus interstícios de
terras pouco férteis, sobre os territórios circundantes com suas
cidades. Trata-se de um poder patrimonial, de “dono de terra, gado e
gente”, os coronéis tradicionais, com repercussões na estrutura de poder
central. Foi assim durante cinco séculos e ainda é assim em grande
parte do país.
Sem dúvida, mudanças ocorreram, especialmente nas últimas décadas,
pois os latifúndios se expandiram, modernizaram e viraram “agronegócio”.
Como agronegócio, deixaram de ser o símbolo do atraso e viraram
alicerce do Brasil potência emergente, com crescentes exportações
baseadas em produtividade obtida à base de uma agricultura altamente
dependente de agroquímicos, contaminada e contaminante. No processo,
renovaram o próprio poder político e hoje são a “bancada ruralista”.
Eles são quase a metade do Congresso Nacional, apesar de serem menos de
1% da cidadania brasileira! Isto mostra não só o tamanho do poder do
velho latifúndio, mas sobretudo as amarras da democracia no Brasil para
projetar um país de inclusão e justiça social, de sustentabilidade
socioambiental, de participação cidadã. Apesar de estar na agenda
pública e termos um Ministério de Desenvolvimento Agrário encarregado, a
Reforma Agrária não arranha a imagem de sucesso de que desfrutam os
enormes latifúndios do agronegócio. Todos os ecossistemas e biomas do
território brasileiro estão submetidos aos interesses latifundiários.
Neste quadro, estamos deixando de discutir a fundo o Código
Florestal. Até aqui fomos incapazes de criar um movimento de cidadania
irresistível, capaz de botar a tal bancada ruralista na defensiva e
permitir que as vozes mais progressistas no Congresso e no governo
prevaleçam. Talvez não avaliamos o quanto o Código Florestal está longe
de ser uma questão técnica, sobre as condições de exploração agrícola, e
é essencialmente política, de projeto de sociedade. Estamos diante de
questões como preservar e regular o uso de um bem comum fundamental,
complexo, que sintetiza em si um conjunto interdependente de sistemas
ecológicos: o ciclo da água, com evaporação, chuvas, nascentes, rios e o
seu desague no mar, o ar que respiramos e os ventos, a biodiversidade,
as flora e fauna, a composição e a fertilidade das terras, o clima
enfim. Sem contar que tal bem comum é a base indispensável de
territórios de cidadania, da possibilidade de uma sociedade agrária
inclusiva, de direitos cidadãos e baseada na agroecologia. Como parte da
natureza, todo ser humano depende desta base natural, seu bem comum
vital, usado e organizado como território humano, dinâmico, em
diversidade de formas. A qualidade da vida, de toda vida, depende da
saúde do bem comum natural.
Olhando esta questão de uma perspectiva biocivilizatória, condição
para pensar em economias e sociedades ao mesmo tempo socialmente justas,
participativas e ambientalmente sustentáveis, qualquer uso deste bem
comum deve ter como pressuposto a sua integridade, o cuidado e o
compartilhamento entre todos, das atuais gerações e de futuras. Mais, é
um bem comum planetário, pois seu uso aqui pode afetar os sistemas
ecológicos que regulam o Planeta como um todo. Não esqueçamos nossa
responsabilidade como guardiões do imenso patrimônio natural da
humanidade. O seu uso predatório deve ser visto como crime contra a
cidadania brasileira e contra a humanidade inteira, além de crime contra
o direito imanente da natureza, com todas as formas existentes de vida,
de ser como é.
No processo do Código Florestal, o debate esbarra no absurdo dos
privilégios de proprietários da terra. Entre nós, a propriedade da terra
é algo absoluto, acima de tudo mais. Precisamos enfrentar esta herança
de nossa formação autoritária e excludente. A propriedade da terra não
pode continuar sendo um direito a que tudo mais deve se submeter. Não
pode ser tomada como direito de destruir, desmatar, envenenar, manter
trabalho escravo. Não cabe a proprietários definir como usar o bem comum
que é de todos que compartem o território brasileiro. A concessão de
uso, expresso na propriedade da terra, deve obedecer a regulações
públicas e cidadãs crescentes. A legitimidade de novas regras vem na
esteira de maior conhecimento sobre a integridade da natureza e seu
papel na qualidade de toda vida, no campo e na cidade. Avançar com um
Código Florestal capaz de reconhecer os novos direitos de cidadania,
brasileira e planetária, e de direitos naturais é uma questão que nasce
na própria democratização da sociedade brasileira. Uma coisa é certa:
precisamos tanto de um Código Florestal para valer, como de governos e
de um Judiciário que não façam vista grossa aos crimes ambientais e
mudem a lógica latifundiária no trato do patrimônio natural, nosso bem
comum maior. Será impossível avançar na democratização sem quebrar tal
lógica. Código Florestal tem a ver com democracia, justiça social e bem
viver, e não só com florestas.
Cândido Grzybowski, sociólogo e diretor do Ibase
Colunista do Canal Ibase
Colunista do Canal Ibase
CEPRO – Um
Projeto de Cidadania, Educação e Cultura em Rio das Ostras.
Alameda Casimiro de Abreu, 292, Bairro Nova
Esperança - centro
Rio das Ostras
Tel.: (22)
2760-6238 e Cel.:(22)9966-9436
E-mail: cepro.rj@gmail.com
Comunidade no
Orkut:
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=55263085Twitter: http://www.twitter.com/CEPRO_RJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário