quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A cidadania fixou suas trincheiras. E agora?


As surpreendentes e grandes manifestações de junho nas principais cidades do Brasil foram uma espécie de grito de alerta. A cidadania multifacetada, em sua generalidade e espontaneidade, sem intermediários, disse claramente: “Basta! Assim não dá!”. Partiu para definir um limite a partir de onde é simplesmente inaceitável que interesses privados de grandes empresas, não importa a razão, estejam acima de direitos de cidadania e sejam prioridades nas políticas dos governantes. Pior, não é possível que representantes eleitos pela cidadania sirvam a interesses privados. Em plena Copa das Confederações, fora dos estádios, o jogo real foi entre direitos de todos e todas versus acumulação de muito poucos e o sistema político a seu serviço. O lado emblemático da explosão de cidadania nas ruas foi o contraponto entre os estádios suntuosos “padrão FIFA” – que deram muito dinheiro para empreiteiras, beneficiárias das obras públicas e grandes financiadoras eleitorais de políticos – contra o custo, a falta e a total precariedade do direito ao transporte decente no dia a dia de milhões, o injustificável descalabro na saúde e uma educação pública feita para ser lamentável, de segunda classe mesmo. De fato, assim não dá! Não é a falta de recursos que explica tal situação. O problema são as prioridades e o mau uso de nosso dinheiro, é o conluio do governo com grandes empresas em nome de um desenvolvimento que serve sobretudo para… a acumulação de capital!

O que ocorreu caiu como uma bomba no meio político oficial, tanto nos governantes de todos os escalões como nos detentores de mandados políticos e nos partidos existentes. Os donos das grandes empresas, o verdadeiro poder real por trás do oficial, ficaram calados, como é seu jeito de fazer negócios. Mas a cidadania, como força instituinte e constituinte da democracia – a única realmente legítima, mesmo difusa –, mostrou que sabe o que é inaceitável de um ponto de vista de direitos. Não só o recado foi dado, mas a cidadania definiu suas trincheiras. Foi estabelecido claramente um limite. As coisas não podem continuar no mesmo rumo. Apenas os ganhos em termos de salários, transferências e créditos de consumo, por mais que sejam significativos como é no caso do Brasil, em lugar nenhum do mundo calam a voz da cidadania. Direitos de cidadania não se medem em dinheiro, mas em qualidade das relações sociais assentadas em direitos iguais e em compartilhamento de bens e serviços entre todos e todas.

De um ponto de vista mais substantivo, foi posta em questão a própria opção por uma economia feita para grandes empresas, numa aposta errada de crescimento a todo custo. Crescer no capitalismo é, antes de tudo, acumular, ganhar mais e mais, no limite não importando como. Nunca foi e não será produzir bens e serviços para a coletividade. Atender necessidades, vistas pela ótica do mercado, é apenas uma contingência da acumulação, nunca o seu fim. Pedir para que as forças promotoras do capitalismo respeitem padrões mínimos de justiça social e equidade é como esperar que de um ovo de galinha saia um elefante. Agora, governantes que fazem tudo depender do crescimento dos negócios, em nome do desenvolvimento, com as definições de políticas públicas e prioridades de investimento nos levam a uma situação onde pode crescer a acumulação capitalista, mas são os direitos de cidadania de todos e todas que ficam na rabeira.

Bem, a cidadania irrompeu de forma surpreendente, sem ser chamada, na hora menos esperada. Deu um susto geral. Acho, porém, que a ficha de detentores de poder e seus gestores ainda não caiu. A cidadania fixou suas trincheiras. Políticos, governantes, aparatos policiais, organizações empresariais ainda não processaram o recado em sua radicalidade. Depois do susto, voltaram a agir como antes.

Estão brincando com o fogo. É certo que os Black Blocs perturbam, mas não dão conta do vulcão que ferve no seio da sociedade civil. Aliás, eles não são e nem foram delegados como representantes da insurgente cidadania. São apenas uma pequeníssima parcela dos indignados com direito a se manifestar. Por sinal, há algo mais espúrio do que a criminalização e a repressão policial cega aos Black Blocs, como se todos fossem vândalos?

Por mais importante e oportuna que tenha sido a explosão da cidadania brasileira em junho último, o fato é que mudanças reais podem não acontecer ou vão levar tempo para serem viabilizadas. Depois do susto, os governantes e os nossos representantes políticos parecem retomar o ritmo de sua “sufocante” normalidade. Mas será mesmo que tudo está normal?

De um ponto de vista de cidadania, as irrupções de junho último foram uma forma da gente como cidadania se fortalecer. Anunciamos em alto e bom som que somos parte fundamental e decisiva, ser for preciso, do jogo democrático. E o jogo real no Brasil não é sobre distribuir migalhas do crescimento, mas de mudança de paradigma, onde direitos estão acima de tudo. O que queremos não é mais e mais do mesmo. Queremos direitos, direito à cidade, direito de ir e vir, direito à segurança, educação e saúde. Mais que tudo, direito de reivindicar, de ser incluído na cidadania plena e poder cantar a plenos pulmões o hino nacional. Direito de ser feliz e manifestar felicidade. Direito de compartilhar brasilidade com 200 milhões de brasileiros, de viver num país com mais igualdade, sem privilégios para grandes grupos econômicos e financeiros. Parece que nossos governantes e nossos representantes não perceberam a radicalidade da reivindicação das ruas. Estão de costas para a gente. Até quando?

 Cândido Grzybowski é sociólogo e diretor do Ibase.

Fonte: Canal Ibase.


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