A
carícia constitui uma das expressões supremas da ternura sobre a qual
discorremos no artigo anterior. Por que dizemos carícia essencial? Porque
queremos distingui-la da carícia como pura moção psicológica, em função de uma
bem querença fugaz e sem história . A carícia-moção não envolve o todo da
pessoa. A carícia é essencial quando se transforma numa atitude, num modo-de-ser
que qualifica a pessoa em sua totalidade, na psiquê, no
pensamento, na vontade, na interioridade, nas relações.
O
órgão da carícia é, fundamentalmente, a mão: a mão que toca, a mão que afaga, a
mão que estabelece relação, a mão que acalenta, a mão que traz quietude. Mas a
mão é mais que a mão. É a pessoa inteira que através da mão e na mão revela um
modo-de-ser carinhoso. A carícia toca o profundo do ser humano, lá onde se
situa seu Centro pessoal. Para que a carícia seja verdadeiramente essencial
precisamos cultivar o Eu profundo, aquela busca do mais íntimo e verdadeiro em
nós e não apenas o ego superficial da consciência sempre cheia de preocupações.
A
carícia que emerge do Centro confere repouso, integração e confiança. Daí o
sentido do afago. Ao acariciar a criança a mãe lhe comunica a experiência mais
orientadora que existe: a confiança fundamental na bondade da vida; a
confiança de que, no fundo, apesar das tantas distorções, tudo tem
sentido; a confiança de que a paz e não o pesadelo é a realidade
mais verdadeira; a confiança na acolhida no grande Útero.
Assim
como a ternura, a carícia exige total altruísmo, respeito pelo outro e renúncia
a qualquer outra intenção que não seja a da experiência de querer
bem e de amar. Não é um roçar de peles, mas um investimento de
carinho e de amor através da mão e da pele, pele que é o nosso eu concreto .
O
afeto não existe sem a carícia, a ternura e o cuidado. Assim como a estrela
precisa de uma aura para brilhar, da mesma forma o afeto necessita da
carícia para sobreviver. É a carícia da pele, do cabelo, das mãos,
do rosto, dos ombros, da intimidade sexual que confere concretude ao afeto e ao
amor. É a qualidade da carícia que impede o afeto de ser mentiroso, falso ou
dúbio. A carícia essencial é leve como um entreabrir suave da porta. Jamais há
carícia na violência de arrombar portas e janelas, quer dizer, na invasão
da intimidade da pessoa.
Disse
com precisão o psiquiatra colombiano Luis Carlos Restrepo que
escreveu um belo livro sobre “O direito à ternura”(Vozes 1998): ”A
mão, órgão humano por excelência, serve tanto para acariciar como para agarrar.
Mão que agarra e mão que acaricia são duas facetas extremas das
possibilidades de encontro inter-humano”.
Numa
reflexão cultural mais ampla, a mão que agarra corporifica o modo-de-ser dos
últimos quatro séculos, da assim chamada modernidade. O eixo articulador do
paradigma moderno é a vontade de agarrar tudo para possuir e dominar. Todo o
Continente latinoameriano foi agarrado e praticamente dizimado pela invasão
militar e religiosa dos ibéricos. E veio a Africa, a China, todo o mundo que se
pôde agarrar, até a Lua.
Os
modernos agarraram dominando a natureza, explorando seus bens e serviços sem
qualquer consideração de respeito de seus limites e sem dar-lhe
tempo de repouso para poder se reproduzir. Hoje colhemos os frutos envenenados
desta prática sem qualquer cuidado e ausente de todo sentimento de carícia para
com o que vive e é vulnerável.
Agarrar
é expressão do poder sobre, da manipulação, do enquadramento do outro ou das
coisas ao meu modo-de-ser. Se bem repararmos, não ocorreu
uma mundialização, respeitando as culturas em sua rica diversidade. O que
ocorreu foi a ocidentalização do mundo. E na sua forma mas pedestre: uma
hamburguerização do estilo de vida norteamericano imposto a todos os quadrantes
do planeta.
A mão
que acaricia representa a alternativa necessária: o modo-de-ser-cuidado, pois
“a carícia é uma mão revestida de paciência que toca sem ferir e solta para
permitir a mobilidade do ser com quem entramos em contacto”(Restrepo).
É
urgente nos dias de hoje resgatar nos seres humanos, a dimensão da carícia
essencial. Ela está dentro de todos nós, embora encoberta por grossa camada de
cinza de materialismo, de consumismo e de futilidades.
A carícia essencial nos
devolve a nossa humanidade perdida. Em seu sentido melhor reforça
também o preceito ético mais universal: tratar humanamente cada ser humano,
quer dizer, com compreensão, com acolhida, com cuidado e com a carícia
essencial.
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