segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A raiz última da crise ecológica: a ruptura da re-ligação universal

Por Leonardo Boff

Há muitas causas que levaram à atual crise ecológica. Mas temos que chegar à última: a ruptura permanente da re-ligação básica que o  ser humano introdiziu, alimentou e perpetuou com o conjunto do universo e com seu Criador. 

Tocamos aqui numa dimensão profundamente misteriosa e trágica da história humana e universal. A tradição judaico-cristã chama a essa frustração fundamental de pecado do mundo e a teologia no seguimento de Santo Agostinho que inventou esta expressão, de pecado original ou queda original. O original aqui não tem nada a ver com as origens históricas deste antifenômeno, portanto, ao ontem. Mas ao que é originário no ser humano, ao que afeta seu fundamento e sentido radical de ser, portanto, ao agora de sua condição humana.      

Pecado também não pode ser reduzido a uma mera dimensão moral ou a um ato falho do ser humano. Temos a ver com uma atitude globalizadora, portanto, com uma subversão de todas as relações nas quais ele está inserido. Trata-se de uma dimensão ontológica, que concerne ao ser humano, entendido como um nó de relações. Esse nó se encontra distorcido e viciado, prejudicando todos os tipos de relação. 

Importa enfatizar que o pecado original é uma interpretação de uma experiência  fundamental, uma resposta a um enigma desafiante. Por exemplo,  existe o esplendor de uma cerejeira em flor no Japão e simultaneamente um tsunâmi em Fukushima que tudo arrasa. Existe uma madre Teresa de Calcutá que salva moribundos das ruas e um Hitler que envia 6 milhões de judeus para as câmaras de gás. Por que esta contradição? Os filósofos e os teólogos continuam quebrando a  cabeça para encontrar  uma resposta. E até hoje não a encontraram. 

Sem entrar nas muitas possíveis interpretações,  assumimos uma, pois ela  ganha mais e mais o consenso dos pensadores religiosos: a imperfeição como momento do processo evolucionário. Deus não criou o universo pronto uma vez por todas, um acontecimento passado, rotundamente perfeito.  Senão deslanchou um processo em aberto e perfectível, que fará uma caminhada  rumo a formas cada vez mais complexas, sutis e perfeitas. Esperamos que um dia chegará a seu ponto Ômega. 

A imperfeição não é um defeito mas uma marca da evolução. Ela não traduz o desígnio último de Deus sobre sua criação, mas um momento dentro de um imenso processo. O paraíso terrestre não significa saudade de uma idade de ouro perdida, mas a promessa de um futuro que ainda virá. A primeira página das Escrituras, na verdade, é a última. Vem no começo como uma espécie de maquete do futuro, para que os leitoros/as se encham de esperança acerca do fim bom de toda a criação. 

São Paulo via a condição decaída da criação como um submetimendo "à vaidade" (mataiótes), não por causa do ser humano mas por causa de Deus mesmo. O sentido exegético de “vaidade” aponta para o processo de amadurecimento. A natureza não alcançou ainda sua maturidade. Por isso na fase atual se encontra ainda longe da meta a ser alcançada. Daí que a "criação inteira geme até o presente e sofre dores de parto" (Rm 8,22). O ser humano participa deste processo de amadurecimento, gemendo também (Rm 8,23). A criação inteira espera ansiosa pelo pleno amadurecimento  dos filhos e filhas de Deus. Pois entre eles e o resto da criação vigora uma profunda interdependência e re-ligação Quando isso ocorrer, a criação chegará também a sua maturidade, pois, como diz Paulo, "participará da gloriosa liberdade dos filhos e filhas de Deus" (Cf. Rm 8, 20). 

Então se realiza o desígnio terminal de Deus. Somente agora Deus poderá proferir a esperada palavra: "e viu que tudo era bom". Por ora, estas palavras são profecias e promessas para o futuro, porque nem tudo é bom. Bem disse o filósofo Ernst Bloch, o do princípio esperança: “O gênesis está no fim e não no começo”. O atraso do ser humano no seu amadurecimento implica no atraso da criação. Seu avanço implica um avanço da totalidade. Ele pode ser um instrumento de libertação ou de emperramento do processo  evolucionário. 

É aqui que reside o drama: evolução, quando chega ao nível humano, alcança o patamar da consciência e da  liberdade. O ser humano foi criado criador. Pode intervir na natureza para o bem, cuidando dela, ou para o mal devastando-a. Ele começou, quem sabe, desde o surgimento do homo habilis, há 2,7 milhões de anos, quando ele criou o instrumento com o qual intervinha sem respeitar nos ritmos da natureza. No começo podia ser apenas um ato. Mas a repetição criou uma atitude de falta de cuidado. Ao invés de estar junto com as coisas, convivendo, colocou-se acima delas, dominando. E houve um crescendo  até os dias atuais.

Com isso rompeu com a solidariedade natural entre todos os seres. Contradisse o desígnio do Criador, que quis o ser humano como con-criador e que por seu gênio completasse a criação imperfeita. Este colocou-se no lugar de Deus. Sentiu-se pela força da inteligência e da vontade um pequeno “deus” e passou a comportar-se como se fora Deus de verdade. 

Esta é a grande ruptura com a natureza e com o Criador que subjaz à crise ecológica. O problema está no tipo de ser humano que se forjou na história, mais uma “força geofísica de destruição” (E.Wilson) que um fator de cuidado e preservação. 

A cura reside na re-ligação com todas as coisas. Não necessariamente precisa ser mais religioso, mas mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. Ele precisa voltar à Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador. Então, será refeito o contrato natural. E, se ainda se abrir ao Criador, saciará sua sede infinita e colherá como fruto a paz.


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