Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais
"Sociedade de Risco – rumo a uma outra
modernidade” – esse é o título do livro de Ulrich Beck, publicado pela
Editora 34 Ltda., tradução de Sebastião Nascimento. O autor contrapõe a
produção distribuição de riqueza à produção e distribuição de riscos. São os
riscos da modernização, "produzidos no estágio mais avançado do desenvolvimento
das forças produtivas”.
Geram-se,
assim, crescentes situações de ameaça não somente à natureza e ao meio
ambiente, mas à qualidade de vida entendida como biodiversidade (a vida em
todas as suas formas). Não que a fome e as necessidades básicas tenham sido
equacionadas. Mas, a essas ameaças que rondam especialmente a existência das
camadas de baixa renda, acrescentam-se outras, desta vez sem fronteiras de
qualquer espécie, atingindo a tudo e a todos em qualquer lugar do planeta.
Tais
riscos não podem ser desvinculados do que se convencionou chamar de "revolução
verde”. O imperativo mercadológico da produção em larga escala e da
produtividade leva ao uso de fertilizantes, inseticidas, herbicidas e uma série
de outros produtos químicos que acabam comprometendo a qualidade dos alimentos,
além de contaminar o ar, as águas e o solo. Juntamente com o tomate e a alface,
a fruta e o milho, o pimentão e a cenoura, levamos para casa hóspedes estranhos
e não convidados, os quais, a largo prazo, decretam doenças desconhecidas e na
ponta da linha a morte precoce.
A
racionalidade científica, muitas vezes subordinada à lógica do mercado,
trabalhando para otimizar produção, lucro e acumulação, se contrapõe à
racionalidade social. Esta permanece atenta às espécies de fauna e flora
ameaçadas, como também ao viés perverso dessa ameaça global. De fato, como
insiste Ulrich: "A história da distribuição dos riscos mostra que estes se
atêm, assim como as riquezas, ao esquema de classe – mas de modo inverso: as
riquezas acumulam-se em cima, os riscos em baixo”. Opõem-se uma à outra uma
razão cega, voltada à exploração dos recursos naturais, a uma razão ecológica e
cidadã, ciente dos perigos de que sofre o planeta e seus habitantes. Mas entre
ambas não há linhas divisórias tão nítidas e precisas como gostaríamos de
imaginar. Não raro se mesclam, se confundem e se alternam, dependendo dos
interesses em jogo.
Os
que ocupam a base da pirâmide social dispõem de menos instrumentos de defesa
para defender-se dos riscos. Eliminados da riqueza, são chamados a compartilhar
as ameaças. Numa palavra, enquanto os bens de produção são privatizados, seus
efeitos colaterais e nocivos se socializam. E o fazem de forma desigual. Por
uma dupla razão, os trabalhadores menos protegidos serão igualmente os
primeiros atingidos pelos riscos: de um lado, excluídos dos benefícios do
progresso técnico, acabam confinados aos terrenos mais vulneráveis às
catástrofes (morros, beira de riachos, alagados, proximidade de usinas
nucleares, etc.). De outro lado, encontram-se impossibilitados de adquirir os
equipamentos necessários para defender-se da contaminação (moradias adequadas,
máscaras, filtros, etc.).
Pior
ainda, as verduras, frutas e legumes produzidos de forma "natural” (sem
agrotóxicos) estão fora do alcance de seus bolsos e salários. Nas palavras do
autor, "as possibilidades e capacidades de lidar com situações de risco, de
contorná-las ou compensá-las acabam sendo desigualmente distribuídas entre
distintas camadas da renda e educação”. Torna-se cada vez mais oneroso conviver
com os efeitos colaterais da produção em massa, o que faz dos trabalhadores e
suas famílias vítimas ao quadrado. Entre tais vítimas, e com o agravamento da
crise mundial, destacam-se os imigrantes, relegados às regiões e empregos mais
perigosos, sujos e mal pagos,
Se é
verdade que os riscos possuem um efeito
bumerangue com a globalização, também é certo que ele o faz
diferenciadamente. "Cedo ou tarde, eles alcançam inclusive aqueles que os
produziram ou que lucraram com eles”, diz o texto, mas isso ocorre num segundo
tempo. Isto é, depois de ter devastado populações inteiras por intoxicação,
inundações, desertificações e outros tipos de catástrofes. Estas tendem a
vitimar aqueles que ocupam os piores postos, seja em termos de trabalho e
remuneração, seja em termos de moradia e serviços públicos. Em síntese, o
efeito bumerangue, embora possa atingir a todos indiscriminadamente, por si só
carrega uma tendência selecionadora. Neste caso, a foice da morte não é cega:
colhe onde encontra mais facilidade e menos proteção.
É
assim que "situações de classe e situações de risco se sobrepõem”.
Historicamente, os trabalhadores instalam-se ao lado das fábricas e chaminés,
próximo às refinarias e indústrias químicas; alojam-se nos canteiros de obras e
habitam as pontas de rua das cidades do interior, onde o mar de cana-de-açúcar
e soja, por exemplo, praticamente invade suas portas e janelas. Encontram-se,
por isso, mais expostos às toneladas e toneladas de veneno tóxico. "As
indústrias de risco foram transferidas para países com mão de obra barata. Isto
não aconteceu por acaso. Existe uma sistemática ‘força de atração’ entre
pobreza extrema e riscos extremos”, conclui nosso autor.
O
fato é que a potencialidade da produção dos riscos cresce simultaneamente à
potencialidade da produção de riqueza. Porém, enquanto as carências que exigem
novos produtos são visíveis a olho nu, os riscos são invisíveis, e quanto mais
o são, maior o perigo. Sua visibilidade exige a mediação das ciências sociais e
humanas, nem sempre comprometidas com a racionalidade social e ecologicamente sustentável.
Ao contrário, por vezes revelam-se, pura e simplesmente, mercenárias da
racionalidade do processo de produção e da panaceia do crescimento.
Como
reverter semelhante cenário? Como equacionar "as oposições entre aqueles que
são atingidos pelos riscos e aqueles que lucram com eles”? A resposta de Ulrich
passa pela "utopia da sociedade mundial”! À medida que os riscos se agravam,
também se ampliam, ultrapassam todas as fronteiras e se globalizam. Daí a
necessidade urgente de repensar o próprio modelo econômico de produção e
distribuição equitativa dos bens. Em outras palavras, é a civilização ocidental
como um todo que está em questão. O que produzir? Como produzir? Para quem
produzir?... São interrogações imperativas, cujo grau de urgência é diretamente
proporcional à multiplicação dos riscos.
Fonte: Adital
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