Por Leonardo Boff
Uma grita geral da mídia corporativa, de
parlamentares da oposição e de analistas sociais ligados ao status quo de viés
conservador se levantou furiosamente contra o decreto presidencial que
institui a Política Nacional de Participação Social. O decreto não inova em nada
nem introduz novos itens de participação social. Apenas procura ordenar os
movimentos sociais existentes, alguns vindos dos anos 30 do século pássado, mas
que nos últimos anos se multiplicaram exponencialmente a ponto de Noam Chomsky
e Vandana Shiva considerarem o Brasil o país no mundo com mais movimentos
organizados e de todo tipo. O decreto reconhece esta realidade e a estimula para
que enriqueça o tipo de democracia representativa vigente, com um elemento novo
que é a democracia participativa. Esta não tem poder de decisão apenas de
consulta, de informação, de troca e de sugestão para os problemas locais e
nacionais.
Portanto, aqueles analistas que afirmam,
ao arrepio do texto do decreto, que a presença dos movimentos sociais tira o
poder de decisão do governo, do parlamento e do poder público laboram em erro
ou acusam de má-fé. E o fazem não sem razão. Estão acostumados a se mover dentro
de um tipo de democracia de baixíssima intensidade, de costas para a sociedade e
livre de qualquer controle social.
Valho-me das palavras de um sociólogo e
pedagogo da Universidade de Brasília, Pedro Demo, que considero uma das mentes
mais brilhantes e menos aproveitadas de nosso país. Em sua Introdução à
sociologia (2002) diz enfaticamene:”Nossa democracia é encenação nacional de
hipocrisia refinada, repleta de leis 'bonitas', mas feitas sempre, em última
instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim.
Políitico (com raras exceções) é gente que se caracteriza por ganhar bem,
trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados,
enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…Se
ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria
negação” (p.330.333). Não faz uma caricatura de nossa democracia mas uma
descrição real daquilo que ela sempre foi em nossa história. Em grande parte
possui o caráter de uma farsa,. Hoje chegou, em alguns aspectos, a níveis de
escárnio.
Mas ela pode ser melhorada e enriquecida
com a energia acumulada pelas centenas de movimentos sociais e pela sociedade
organizada que estão revitalizando as bases do país e que não aceitam mais esse
tipo de Brasil. Por força da verdade, importa reconhecer, que, entre acertos e
erros, ele ganhou outra configuração a partir do momento em que outro sujeito
histórico, vindo da grande tribulação, chegou à Presidência da República. Agora
esses atores sociais querem completar esta obra de magnitude histórica com mais
participação. E eles têm direito a isso, pois a democracia é um modo de viver e
de organizar a vida social sempre em aberto – democracia sem fim – no dizer do
sociólogo português Boaventura de Souza Santos.
Quem conhece a vasta obra de Norberto
Bobbio, um dos maiores teóricos da democracia no século 20, sabe das infindas
discussões que cercam este tema, desde o tempo dos gregos que, por primeiro, a
formularam. Mas, deixando de lado este excitante debate, podemos afirmar que o
ato de votar não é o ponto de chegada ou o ponto final da democracia, como
querem os liberais. É um patamar que permite outros níveis de realização do
verdadeiro sentido de toda a política: realizar o bem comum através da vontade
geral que se expressa por representantes eleitos e pela participação da
sociedade organizada. Dito de outra forma: é criar as condições para o
desenvolvimento integral das capacidades essenciais de todos os membros da
sociedade.
Isso no pensar de Bobbio – simplificando
uma complexa discussão – se viabiliza através da democracia formal e da
democracia substancial. A formal se constitui por um conjunto de regras,
comportamentos e procedimentos para chegar a decisões políticas por parte do
governo e dos representantes eleitos. Como se depreende, estabelecem-se regras,
como alcançar a decisões políticas, mas não define o que decidir. É aqui que
entra a democracia substancial. Ela determina certos conjuntos de fins,
principalmente o pressuposto de toda a democracia: a igualdade de todos perante
a lei, a busca comum do bem comum, a justiça social, o combate aos privilégios e
a todo tipo de corrupção e, não em último lugar, a preservação das bases
ecológicas que sustentam a vida sobre a Terra e o futuro da civilização humana.
Os movimentos sociais e a sociedade
organizada, devido à gravidade da situação global do sistema-vida e do
sistema-Terra e na busca de um caminho melhor para o Brasil e para o mundo,
querem oferecer a sua ciência, as experiências feitas, seus inventos, suas
formas próprias de produzir, distribuir e consumir, enfim, tudo aquilo que possa
contribuir na invenção de outro tipo de Brasil, no qual todos possam caber, a
natureza inteira incluída.
Uma democracia que se nega a esta
colaboração é uma democracia que se volta contra o povo e, no termo, contra a
vida. Daí a importância de secundarmos o decreto presidencial sobre a Política
Nacional de Participação Social, tão irrefutavelmente explicada em entrevista na
TV e em O Globo (16/06/2014) pelo ministro-chefe da Secretaria Geral da
Presidência, Gilberto Carvalho.
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