O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que
do fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante portanto a participação
cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste
artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição,
um atentado à democracia não pode ser ignorância: é vulgar defesa de
interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na
política. Preferem se entender com representantes.
A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a democracia
representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A
verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre
convocaram nos seus discursos a que população participe, apoie,
critique, fiscalize, exerça os seus direitos cidadãos. Mas quando um
governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa
participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da
direita invertem o discurso.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As
multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em
mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas
justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo
suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina
pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de
transmissão entre as necessidades da população e os processos
decisórios.
Os resultados foram que se construíram viadutos e outras
infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e
paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro,
mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é
uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto,
gerando contaminação a cada enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada
em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores
imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro
corporativo em vez de buscar o bem estar da população.
Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a
população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um
residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando
chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito
diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas.
Mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das
suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a
inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao gerar canais de
participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades
reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens; saneamento
básico e tratamento de esgotos muito menos.
Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia, trata-se de
uma defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se trata
de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão
pública.
Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos está cada
vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer e
semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda
pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o
essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas
políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar
um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos
setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população
ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e
semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos
aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na
população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais
rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.
A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna é que
são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a
cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada
porque no agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e
a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política
centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao
que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige
políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer
parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do
mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São
formas densas de organização da sociedade.
Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas, fizemos na
Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da
Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de
maneira participativa e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente,
nas regiões onde trabalham, tanto a mortalidade infantil como as
hospitalizações. O custo total por criança é de 1,70 reais por mês. A
revista Exame publica um estudo sobre esta Organização da Sociedade
Civil (OSC), porque tenta entender como se consegue tantos resultados
com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição mais
competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as
grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que
chega a organizações deste tipo se multiplica.
A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada em
que o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna
qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a
política pública se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar
os resultados que lhe interessam. A eficiência aqui não é porque se
aplicou a última recomendação dos consultores em kai-ban, kai-zen,
just-in-time, lean-and-mean, TQM e semelhantes, mas simplesmente porque
se assegurou que os destinatários finais das políticas se apropriem do
processo, controlem os resultados.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades
onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e
sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos
Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram grande parte dos
projetos, simplesmente porque são mais eficientes. Não seriam mais
eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas
áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das
atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são
simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a ganhar com este
tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e
empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs),
ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as
organizações sociais. O seu conceito de privado é muito estreito.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências
pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países
desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas
descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras
estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes,
como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como
as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas.
Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem
para todos. Espalhar ódio em nome da democracia não ajuda nada.
Ladislau Dowbor é professor de economia nas
pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das
Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em
http://dowbor.org
Fonte: Outras Palavras.
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