A ameaça de suicídio coletivo por parte de indígenas guarani-kaiowá
no sudoeste do Brasil colocou em evidência uma nova fórmula de
agravamento dos conflitos pela terra ancestral: a expansão da soja e da
cana-de-açúcar, de alto valor de exportação para o país. O estudo Em Terras Alheias – A Produção de Soja e Cana em Áreas Guarani no Mato Grosso do Sul,
da organização Repórter Brasil, quer contribuir para essa discussão.
Com base em dados oficiais e investigações nas aldeias desse Estado, o
trabalho mapeou a incidência da cana-de-açúcar e da soja em seis áreas
indígenas.
“Quando aumenta o preço de uma commodity
(produto básico) no mercado internacional, é mais vantajoso plantar soja
ou cana-de-açúcar e a terra encarece. Com maior demanda por terras, o
fazendeiro se arma contra os indígenas e temos picos de conflito como no
ano passado”, disse à IPS uma das responsáveis pelo estudo, a
jornalista e pesquisadora Verena Glass. No Mato Grosso do Sul, onde
vivem cerca de 44 mil guaranis-kaiowás, os conflitos deste ano foram em
propriedades pecuárias, mas a lógica é a mesma: “disputa entre commodities
e terras reivindicadas por indígenas”, ressaltou. Quando o informe foi
divulgado, no dia 24 de outubro, os conflitos se agravaram.
O
estudo foi realizado em julho, quando as ocupações dos kaiowás para
recuperar territórios geraram enfrentamentos e reações violentas por
parte dos fazendeiros, inclusive com ataques com armas de fogo contra
seus acampamentos. Mas o conflito transcendeu as fronteiras estaduais
quando cerca de 30 famílias da comunidade Pyelito Kue anunciaram sua
“morte coletiva”, caso fossem obrigadas a abandonar suas terras, em
processo de demarcação e homologação.
Cansados de esperar em
acampamentos na beira de estradas, os indígenas retomaram uma pequena
parte de suas terras originárias, ocupadas por fazendas. Porém, uma
ordem judicial ordenou sua retirada, em outubro. Quando a notícia,
interpretada como um suicídio coletivo, circulou pelo mundo por meio das
redes sociais, o governo conseguiu reverter a decisão judicial e que os
indígenas permanecessem no lugar até o final da demarcação.
Os
kaiowás disseram ter ficado “meio felizes” com a decisão, disse à IPS
Egon Heck, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Felizes porque
não seriam expulsos de suas terras, mas não totalmente porque ficariam
confinados por tempo indeterminado em apenas um hectare e sem
possibilidade de circular fora dele. “É uma situação agressiva de
confinamento, que começou no século passado e que foi atualizada por
esta decisão judicial”, afirmou o representante do Cimi, vinculado à
Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB).
Heck quer saber até que
ponto quase 200 indígenas, “ligados ao seu território e aos recursos
naturais como modo de vida, conseguirão sobreviver em um hectare. Será
que a leitura da Constituição, que garante a terra a esses povos de
maneira coletiva, está subjugada diante da propriedade privada?”,
questionou.
Maurício Santoro, assessor para direitos humanos da Anistia
Internacional no Brasil, disse à IPS que o Mato Grosso do Sul tem áreas
indígenas densamente povoadas, mas espalhadas entre cultivos de soja e
áreas de pecuária. “Essas terras ainda não foram demarcadas pelo governo
federal, e esse vazio jurídico estimula os conflitos”, alertou.
Assim
como Pyelito Kue, outras comunidades foram expulsas de suas terras e
estão acampadas nas margens de rodovias, sem serviços médicos e
ameaçadas por pistoleiros pagos pelos fazendeiros. “A demora também está
matando o povo. Ninguém decide. Vamos ocupar todas as terras mesmo
sabendo que não há segurança, que vamos morrer. O povo decidiu”, disse
em setembro à IPS o indígena kaiowá Tonico, se referindo às ocupações.
Os índices de desnutrição, suicídio e violência são muito altos, afirmou
Santoro.
Segundo o Cimi, o suicídio está presente há tempo entre os
kaiowás e em outros grupos guaranis, sobretudo entre os jovens. De 2003 a
2010, houve 555 suicídios.
Desde 1991, foram homologadas apenas
oito terras para estas comunidades, que formam o segundo povo indígena
mais numeroso do Brasil, e vive em áreas diminutas. A expansão do
agronegócio, fortemente impulsionado pelo governo estadual, agravou a
situação. O tipo de agricultura que pratica, baseada no uso intensivo de
pesticidas, destruição de micro-organismos dos solos e extinção de rios
e florestas, foi um “agravante fortíssimo” para um processo histórico
de extinção e expulsão dos guarani-kaiowás, descreveu Heck.
A
mecanização agrícola e o uso de agrotóxicos reduziram ao mesmo tempo o
emprego de mão de obra indígena que, sem possibilidade de obter frutos
de suas terras, trabalha em fazendas ou usinas de etanol (extraído da
cana-de-açúcar). “Em pouco tempo não terão nem esse trabalho que, embora
seja semiescravo, é praticamente a única renda” disponível, além da
assistência governamental, alertou Heck.
A organização Repórter
Brasil iniciou uma campanha para que as empresas multinacionais deixem
de comprar matérias-primas de fazendas localizadas irregularmente em
terras indígenas. “A proposta é que os grandes compradores deixem de
adquirir o que é produzido em terras indígenas como uma forma de
castigo. Dessa forma se enfraquece economicamente os produtores e se
reduz um pouco o valor dessa terra indígena”, explicou Glass.
Nesse
contexto, conseguiu-se que duas usinas de etanol do Estado, São
Fernando e Raízen, se comprometessem a não comprar mais cana de áreas
indígenas. Contudo, outras, como Monte Verde, da multinacional Bunge,
adquirem grãos de cinco propriedades instaladas em terras indígenas
ainda em processo de demarcação, segundo Glass. A empresa argumenta que
não está infringindo normas enquanto os fazendeiros não forem obrigados
por lei a abandonarem essas áreas.
O governo de Dilma Rousseff
prometeu acelerar a regularização de terras. Já os produtores rurais
pedem compensações econômicas para se retirarem delas, e criticam que se
pague um erro “com outro erro histórico”: penalizar um setor produtivo.
Fonte: Envolverde/IPS
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