Há mais de 20 anos – 15 dos quais nesta página – o autor destas
linhas escreve sobre a situação dramática dos índios guarani-kaiowás, em
Mato Grosso do Sul (MS). Naquele tempo já eram centenas os casos de
suicídio entre essa gente (a segunda maior etnia indígena no País, 45
mil pessoas). E já nesse tempo eles não tinham onde viver segundo seus
formatos próprios – as terras para as quais gradativamente os expulsavam
eram muito pequenas, não permitiam manter a tradição de plantar,
colher, caçar, pescar. Fora de suas terras, sem formação profissional
adequada, seguiam a trajetória fatal: trabalhar como boias-frias,
tornar-se alcoólatras, mendigos, loucos. E suicidas, como o jovem de 17
anos que se matou no dia seguinte ao de seu casamento – enforcou-se numa
árvore e, sob seus pés, na terra, deixou escrito: “Eu não tenho lugar”.
Quando
ganhou espaço na comunicação a atual crise em dois hectares onde vivem
170 índios, dois dias antes se suicidara um jovem de 23 anos, pelas
mesmas razões. Felizmente, a desembargadora Cecília Mello, do Tribunal
Regional Federal, determinou que os guarani-kaiowás permaneçam na área
até que se conclua a delimitação da que lhes deve caber – e onde estão
“em situação de penúria e falta de assistência”, o que, segundo ela,
“reflete a ausência de providências do poder público para a demarcação
das terras”. Dizia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nesse
momento, que 1.500 guarani-kaiowás já se haviam suicidado.
Só pode
levar ao espanto trazer à memória que havia 5 milhões de índios
ocupando os 8,5 milhões de quilômetros quadrados em 1500, quando aqui
chegaram os colonizadores – ou seja, cada um com 1,7 quilômetro
quadrado, em média. E hoje os guarani-kaiowás da aldeia em questão
precisam ameaçar até com suicídio coletivo para manterem 170 pessoas em
dois hectares, 20 mil metros quadrados, menos de 120 metros para cada
um, pouco mais que a área de um lote dos projetos habitacionais de
governos. Mas nem isso lhes concedem.
Talvez já tenha sido
mencionado em artigo anterior pensamento do antropólogo Lévi-Strauss num
de seus livros, no qual se perguntava por que os índios brasileiros,
que eram milhões, não massacraram os primeiros colonizadores, que eram
umas poucas centenas. Teria sido muito fácil. Mas ele mesmo respondia:
não só não mataram, como os trataram como fidalgos; porque na cosmogonia
do índio brasileiro está sempre presente a chegada do outro – e esse
outro é o limite da liberdade de cada pessoa. Tal como pensava outro
antropólogo, Pierre Clastres (A Sociedade contra o Estado): nas culturas
indígenas não há delegação de poder, ninguém dá ordens; cada indivíduo é
livre; mas o limite da liberdade de cada pessoa está em outra pessoa.
Só que o respeito à liberdade dos colonizadores custou aos índios o
massacre. E situações como as que vivem hoje.
De pouco têm
adiantado relatórios de organismos internacionais, entre eles o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que destacam a
importância (a começar pelo Brasil) das áreas indígenas para a
conservação da biodiversidade, em perigo no mundo. Também têm sido
esquecidas as lições do jurista José Afonso da Silva, que com seu
parecer levou o Supremo Tribunal Federal a decidir pelo direito dos
índios ianomâmis à demarcação de suas reservas, em Roraima: é um direito
reconhecido desde as ordenações da coroa portuguesa, no século 17.
Mas
quem comove o poder brasileiro? Ainda no ano passado – talvez também já
tenha sido comentado aqui -, quando completou meio século a criação do
Parque Indígena do Xingu pelo presidente Jânio Quadros, por proposta dos
irmãos Villas Boas, o autor destas linhas, com apoio do ex-ministro
Gilberto Gil, do artista plástico Siron Franco, do compositor e criador
Egberto Gismonti, do ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai)
Márcio Santilli – entre muitas outras pessoas -, tentou levar à
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) a proposta de transformar o parque em patrimônio ambiental,
histórico e cultural da humanidade. Afinal, naqueles 26 mil quilômetros
quadrados, onde vivem 16 povos, está um pedaço riquíssimo do patrimônio
ambiental brasileiro – de sua flora, sua fauna, seus recursos hídricos
-, hoje cercado pelo desmatamento e pelo plantio de grãos; um pedaço
importante da nossa História, pois a presença de etnias por ali tem mais
de 2 mil anos; um pedaço valioso do patrimônio cultural, com todas as
manifestações lá nascidas e que perduram. Mas para que a Unesco receba
um pedido como esse é imprescindível – foi-nos dito – que ele tenha o
aval de alguma autoridade brasileira. E não conseguimos sequer uma
audiência da Funai ou de outro órgão para expor o pleito.
Não
estranha. Aprendemos mais uma vez que uma iniciativa como essa é
considerada “ameaça à soberania nacional e ao uso de recursos naturais”.
Tal como já acontecera em 2002, quando o autor destas linhas, membro da
comissão que preparava o projeto da Agenda 21 brasileira, observou,
numa reunião, que faltava no texto um capítulo sobre clima e mudanças
nessa área. E propunha que ele fosse escrito. Imediatamente o
representante do Itamaraty na comissão se levantou e impugnou a
proposta, alegando que “essa área, que envolve a soberania brasileira, é
privativa das Forças Armadas e do Itamaraty”. Ponto final. Já
promulgada a Agenda, no início do novo governo, a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) pediu que este escriba a
representasse na Comissão da Agenda. A proposta do capítulo sobre clima e
desenvolvimento sustentável foi reapresentada e aprovada em princípio.
Mas jamais foi discutida. Morreu.
Tampouco estranha, assim, que os
guarani-kaiowás enfrentem esse calvário. Se o Parque do Xingu não pode
ter prioridade, se centenas de milhares de índios em todo o País vivem
um drama diário, que importância tem para o poder a sina de algumas
dezenas de guarani-kaiowás perdidos em meio à soja sul-mato-grossense?
Washington Novaes é jornalista.
Fonte: O Estado de S. Paulo.
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