No Brasil, apenas Fortaleza providenciou uma carta acústica,
embora São Paulo seja considerada uma das cidades mais barulhentas do
mundo
Um dos desafios de viver em ambientes urbanos é o excesso de barulho.
Locais silenciosos em cidades de médio e grande porte são cada vez mais
raros. Já existe inclusive um aplicativo, o stereopublic, em que os
usuários são chamados a encontrar e compartilhar lugares silenciosos e
tranquilos em suas cidades.
Quem pode paga caro para viver em condomínios distantes das regiões
centrais, com áreas verdes que garantam um mínimo de tranquilidade. E
mesmo estes enfrentam diariamente a sina de ir e voltar do trabalho em
congestionamentos cujo nível de ruído, não raro, bate os 100 decibéis
[1]. O máximo que o ouvido humano consegue suportar são 120 db. Expostos
por certo tempo a essa intensidade sonora, ou mais, estamos sujeitos à
dor e à perda auditiva.
Mas o barulho nas grandes cidades não é um problema contemporâneo. De
acordo com a fonoaudióloga e educadora ambiental Márcia Correa, da
Universidade Aberta de Meio Ambiente e Cultura da Paz (Umapaz), em 1867,
havia no Brasil multas para carros de bois cujos eixos rangessem por
falta de graxa. Em 1912, um ato municipal proibia o estalo de chicotes
em cavalos que conduziam carruagens.
O engenheiro especializado em acústica, Davi Akkerman, da Associação
Brasileira para a Qualidade Acústica (ProAcústica), lembra que hoje a
NBR nº 10.151, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),
norteia todas as legislações municipais sobre ruído no Brasil. A norma
foi referenciada em 1990 pela Resolução nº 01 do Conselho Nacional do
Meio Ambiente (Conama).
“Acontece que a última versão dessa norma é de 2000. E, como houve
grande degradação acústica nas cidades, muitos dos padrões que estão na
norma já não servem mais”, resume Akkerman.
Segundo ele, a norma está em
revisão há dois anos, mas há grande pressão de diversos setores, de
indústrias a concessionárias de rodovias. “O conflito de interesses é
muito grande.” O engenheiro ressalta que o grande vilão nas cidades é o
tráfego de veículos. E sentencia: “Se as cidades forem deixadas sem
controle, a qualidade acústica tende a piorar”.
“As cidades estão mais ruidosas. Todo mundo ouve mais alto e fala
mais alto. Isso é um problema de saúde pública, porque todos são
atingidos, não importa a classe social”, afirma Márcia Corrêa, da
Umapaz, que ajudou a organizar o primeiro curso sobre poluição sonora e
os impactos na saúde, promovido em maio pela Secretaria do Verde e do
Meio Ambiente.
Dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que
10% da população mundial está exposta a níveis de pressão sonora que
podem causar perda auditiva induzida por ruído.
“Do ponto de vista do enquadramento do problema, é uma área
interdisciplinar. E, para resolvê-lo, é necessário o envolvimento de
todos os setores: universidades, ONGs, políticos, instituições”, opina
Márcia.
Mesmo dentro de casa, parece que nossos parâmetros se flexibilizaram
com o tempo, a tecnologia, a modernidade e a facilidade de comprar
qualquer coisa a qualquer preço. Quem foi criança nas décadas de 1950 e
1960 ainda guarda lembranças de como era a vida antes dos brinquedos
eletrônicos (e dos sons horríveis que eles fazem). Na década de 1970,
época do chamado “milagre econômico”[2], quando o Brasil entrou no
“mapa” como promissor mercado consumidor, os eletrônicos passaram a
fazer parte constante da vida dos pequeninos. Os que têm entre 40 e 45
anos pegaram bem essa transição. Hoje, em qualquer lugar é possível
comprar brinquedos “piratas” ensurdecedores, cujo barulho muitas vezes
supera os padrões estipulados pelo Instituto Nacional de Metrologia,
Qualidade e Tecnologia (Inmetro) [3].
Isso sem contar a “evolução” da indústria fonográfica, que década
após década nos impõe maior intensidade de volume sonoro. “As pessoas
estão se acostumando a achar que coisa boa é aquilo que tem bastante
volume”, afirma o engenheiro de áudio Beto Mendonça, dono de um estúdio
em São Paulo. Basta comparar o volume dos discos de 20 anos atrás com os
de hoje.
“A música vem sendo ‘achatada’. O som é comprimido ao máximo para que
o volume fique mais alto. Isso provoca uma fadiga auditiva no ouvinte. A
pessoa não consegue chegar até o fim da música, ou do disco, e não sabe
por quê”, resume Mendonça.
Ele ressalta ainda a perda de dinâmica que o excesso de compressão
provoca na música, o que se traduz em perda de qualidade do material
final e, em última instância, em “deseducação” dos ouvintes.
O tema é caro entre profissionais de áudio na Europa e nos EUA, e
leva a tag de The loudness war (Saiba mais). “Há preocupação em discutir
um padrão”, afirma Mendonça.
Mapa de Ruídos
Do ponto de vista das políticas públicas, uma das emergências
apontadas por especialistas no tema é a elaboração de mapas de ruídos
das cidades mais populosas. Na União Europeia, a partir de 2002 as
cidades com mais de 200 mil habitantes foram obrigadas a fazer suas
“cartas acústicas” (mapa de ruídos). Tiveram cinco anos para a
elaboração dos mapas, e depois mais cinco para implementar ações
julgadas necessárias para corrigir problemas e manter a tranquilidade de
espaços considerados “ilhas” de silêncio.
Para se ter uma ideia do quão longe estamos do nível europeu, em São
Paulo, considerada uma das metrópoles mais barulhentas do mundo, a
primeira Conferência Municipal sobre Ruído, Vibração e Perturbação
Sonora aconteceu em abril deste ano, por ocasião do Dia Internacional da
Conscientização sobre o Ruído, o International Noise Awareness Day
(Inad). O evento, realizado na Câmara Municipal de São Paulo por
iniciativa do vereador Andrea Matarazzo (PSDB), durou três dias e contou
com a presença de diversos especialistas no tema.
No Brasil, a única cidade que tem um mapa de ruídos é Fortaleza. De acordo com Aurélio Brito, coordenador da Carta Acústica na Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente da capital cearense, foi feito um protótipo com base em dados de 1995 – 13 anos antes do início da formatação do mapa.
“Este protótipo serviu para definirmos a metodologia e também como
base para um projeto mais sólido. Os resultados obtidos foram pouco
divulgados devido à notória diferença entre a base de dados e a
realidade da cidade, mas, em alguns casos e setores, foram feitas
algumas avaliações”, diz Brito. O projeto encontra-se em fase de
atualização de dados.
Em São Paulo, o Plano Diretor Estratégico, que entrou em vigor no dia
1º de agosto e traça as diretrizes para o desenvolvimento da cidade,
deixou de fora o mapa de ruídos, vetado pelo prefeito Fernando Haddad
(PT). Entre os fatores que podem ter desestimulado o governo estaria o
prazo de um ano, considerado insuficiente para a tarefa.
“Um ano, para uma cidade como São Paulo, é realmente pouco tempo. Mas
dá para fazer um piloto em um bairro predeterminado. Apesar do veto do
prefeito, nós, da ProAcústica, em conjunto com a Câmara Municipal, a
Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental), o IPT
(Instituto Brasileiro de Pesquisas Tecnológicas), a SPTrans (São Paulo
Transporte), a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e o
Sinduscon (Sindicato da Construção de São Paulo), estamos batalhando
para implementar um projeto piloto”, afirma Akkerman.
Segundo ele, para mapear por inteiro a São Paulo seriam necessários, no mínimo, cinco anos.
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[1] Decibel (dB) é uma unidade logarítmica que
indica a proporção de uma quantidade física (neste caso, intensidade) em
relação a um nível de referência especificado. Um decibel é um décimo
de um Bel, unidade raramente usada, e nomeada em homenagem a Alexander
Graham Bell.
[2] Período da ditadura militar que registrou crescimento da economia acima da média.
[3] Segundo o Inmetro, o ruído gerado por
brinquedos, independente da faixa etária a qual se destinam, não deve
ser maior que 85 decibéis, no caso de ruído contínuo, e 100 decibéis no
caso de ruído instantâneo.
Fonte: Página 22.
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