segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Promessas da Grande Transformação (III)

Por Leonardo Boff

Para pormos em curso outro tipo de Grande Transformação que nos devolva a sociedade com mercado e elimine a deletéria sociedade unicamente de mercado, precisamos fazer algumas travessias improrrogáveis. A maioria delas está  em curso, mas elas precisam ser reforçadas. Importa passar: 
- do paradigma Império, vigente há seculos  para o paradigma Comunidade da Terra; 
- de uma sociedade industrialista que depreda os bens naturais e tensiona as relações sociais para uma sociedade de sustentação de toda a vida; 

- da Terra tida como meio de produção e balcão de recursos sujeitos à venda e à exploração para a Terra como um Ente vivo, chamado Gaia, Pacha Mama ou Mãe Terra; 

- da era tecnozoica que devastou grande parte da biosfera para a era ecozoica pela qual todos os saberes e atividades se  ecologizam e juntas cooperam na salvaguarda da vida. 

- da lógica da competição de se reger pelo ganha-perde e que opõe as pessoas para a lógica da cooperação do ganha-ganha que congrega e fortalece a solidariedade entre todos. 

- do capital material, sempre limitado e exaurível, para o capital espiritual e humano ilimitado feito de amor, solidariedade, respeito, compaixão e de uma confraternização com todos os seres da comunidade de vida; 

- de uma sociedade antropocêntrica, separada da natureza, para uma sociedade biocentrada que se sente parte da natureza e busca ajustar seu comportamento à logica do processo cosmogênico que se caracteriza pela sinergia, pela interdependência  de todos com todos e pela cooperação.


Se é perigosa a Grande Transformação da sociedade de mercado, mais promissora ainda é a Grande  Transformação da consciência. Triunfa aquele conjunto de visões, valores e princípios que mais congregam pessoas e melhor projetam um horizonte de esperança para todos. Essa seguramente é a Grande Transformação das mentes e dos corações a que se refere a Carta da Terra. Esperamos que se consolide, ganhe mais e mais espaços de consciência com  práticas alternativas até assumir a hegemonia da  nossa história.

Há um documento acima  citado, a  Carta da Terra, por seu alto valor de inspiração e  gerador de esperança. Ela é fruto de uma vasta consulta dos mais distintos setores das sociedades mundiais, desde os povos originários, das tradições religiosas e espirituais até de notáveis centros de pesquisa. Foi animada especialmente por Michail Gorbachev, Steven Rockfeller, o ex-primeiro-ministro da Holanda Lubbers, Maurice Strong, subsecretário da ONU e Mirian Vilela, brasileira que, desde o início, coordena os trabalhos e dirige o Centro na Costa Rica. Eu memo faço parte do grupo e tenho colaborado na redação do documento final e de sua difusão por onde posso.

Depois de oito anos de intensos trabalhos e de encontros frequentes nos vários continentes, surgiu um documento pequeno mas denso que incorpora o melhor da nova visão nascida das ciências da Terra e da vida, especialmente  da  cosmologia contemporânea. Ai se traçam princípios e se elaboram valores no arco de uma visão holística da ecologia, que podem efetivamente apontar um caminho promissor para a humanidade presente e futura. Aprovado em 2001, foi assumido oficialmente em 2003 pela Unesco como um dos materiais educativos mais inspiradores  do novo milênio.

A Hidrelétrica Itaipu-Binacional, a maior do gênero no mundo, tomou a sério as propostas da Carta da Terra, e seus dois diretores Jorge Samek e Nelton Friedrich conseguiram envolver 29 municípios que bordeiam o grande lago onde vive cerca de um milhão de pessoas. Deram início de fato a uma Grande Transformação. Lá se realiza efetivamente a sustentabilidade e se aplica o cuidado e a responsabilidade coletiva em todos os municípios e em todos os âmbitos, mostrando que, mesmo dentro da velha ordem, se pode gestar o novo porque as pessoas mesmas vivem já agora o que querem para os outros.

Se concretizarmos o sonho da Terra, esta não será mais condenada a ser para a maioria da humanidade um vale de lágrimas e uma via-sacra de padecimentos. Ela pode ser transformada numa montanha de bem-aventuranças, possíveis à nossa sofrida existência e uma pequena antecipação da transfiguração do Tabor.

Para que isso ocorra, não basta sonhar, mas importa praticar.


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