quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O tempo da grande transformação e da corrupção geral

Por Leonardo Boff

Normalmente, as sociedades assentam sobre o seguinte tripé: na economia, que garante a base material da vida  humana para que seja boa e decente; na política, pela qual se distribui o poder e se montam as instituições que fazem funcionar a convivência social; na ética, que estabelece os valores e normas que regem os comportamentos humanos para que haja justiça e paz e se resolvam os conflitos sem recurso à violência. Geralmente, a ética vem acompanhada por uma aura espiritual que responde pelo sentido último da vida e do universo, exigências sempre presentes na agenda humana.

Estas instâncias se entrelaçam numa sociedade funcional, mas sempre nesta ordem: a economia obedece à política e a política se submete à ética. Mas, a partir da revolução industrial no século 19, precisamente a partir de 1834, a economia começou na Inglaterra a se descolar da política e a soterrar a ética. Surgiu uma economia de mercado de forma que todo o sistema econômico fosse dirigido e controlado  apenas pelo mercado, livre de qualquer controle  ou de um limite ético.

A marca registrada deste mercado não é a cooperação mas a competição, que vai além da economia e impregna todas as relações humanas. Mais ainda: criou-se, no dizer de Karl Polanyi, “um  novo credo, totalmente materialista, que acreditava que todos os problemas poderiam ser resolvidos por uma quantidade ilimitada de bens materiais”(A grande transformação, Campus, 2000, pág. 58). Esse credo é ainda hoje assumido com fervor religioso pela maioria dos economistas do sistema imperante e, em geral, pelas políticas públicas.

A  partir de agora, a  economia funcionará como o único eixo articulador de todas as instâncias sociais. Tudo passará pela economia, concretamente pelo PIB. Quem estudou em detalhe esse processo foi o filósofo e historiador da economia, já referido, Karl Polanyi (1866-1964),  de ascendência húngara e judia e mais tarde convertido ao cristianismo de vertente calvinista. Nascido em Viena, atuou na Inglaterra e depois, sob a pressão macarthista, entre Toronto, no Canadá, e a Universidade de Columbia, nos EUA. 

Demonstrou ele que, “em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico” (pág. 77). Então, ocorreu o que ele chamou A grande transformação: de uma economia de mercado se passou a uma sociedade de mercado. 

Em consequência nasceu um novo sistema social, nunca antes havido, onde a sociedade não existe, apenas os indivíduos competindo entre si, coisa que Reagan e Thatcher iriam repetir à saciedade. Tudo mudou, pois tudo, tudo mesmo, vira mercadoria. Qualquer bem será levado ao mercado para ser negociado em vista do lucro individual: produtos naturais, manufaturados, coisas sagradas ligadas diretamente à vida, como água potável, sementes, solos, órgãos humanos. Polanyi não deixa de anotar que tudo isso é “contrário à substância humana e natural das sociedades”. Mas foi o que triunfou, especialmente no após-guerra. O mercado é “um elemento útil, mas subordinado a uma comunidade democrática”, diz Polanyi. O pensador está na base  da “democracia econômica”.


Aqui  cabe recordar as palavras proféticas de Karl Marx, em 1847, Na miséria da filosofia:   “Chegou, enfim, um tempo em que tudo o que os homens haviam considerado inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e podia vender-se. O tempo em que as próprias coisas que até então eram coparticipadas mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas mas jamais compradas — virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc — em que tudo passou para o comércio. O tempo da corrupção geral, da venalidade universal, ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, uma vez tornada valor venal, é levada ao mercado para receber um preço, no  seu mais justo valor”.

Os efeitos socioambientais desastrosos dessa mercantilização de tudo, estamos sentindo-os hoje pelo caos ecológico da Terra. Temos que repensar o lugar da economia no conjunto da vida humana, especialmente face aos limites da Terra. O individualismo mais feroz, a acumulação obsessiva e ilimitada,  enfraquece aqueles valores sem os quais nenhuma sociedade pode se considerar humana: a cooperação, o cuidado de uns para com os outros, o amor e a veneração pela Mãe Terra e a escuta da consciência que nos incita  para bem de todos.

Quando uma sociedade se entorpeceu como a nossa, e por seu crasso materialismo se fez incapaz de sentir o outro como outro, somente enquanto eventual produtor e consumidor, ela está cavando seu próprio abismo. O que disse Chomski há dias na Grécia (22/12/2013) vale como um alerta:  “Aqueles que lideram a corrida para o precipício são as sociedades mais ricas e poderosas, com vantagens incomparáveis como os EUA e o Canadá. Esta é a louca racionalidade da ‘democracia capitalista’ realmente existente”.

Agora, cabe o retorno ao There is no alternative. Não há alternativa: ou mudamos, ou pereceremos, porque os nossos bens materiais não nos salvarão. É o preço letal por termos entregue nosso destino à ditadura da economia transformada num “deus salvador” de todos os problemas.


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