Por Leonardo Boff
Quem leu meus dois artigos anteriores O funesto império
mundial das corporações e Uma governança global da pior espécie: os
mercadores terá seguramente concluído que na única nave espacial-Terra seus
passageiros viajam em condições totalmente diferentes. Um pequeno grupo de
super-ricos ocupou para si a primeira classe com um luxo
escandaloso; outros felizardos ainda viajam na classe econômica e são servidos
razoavelmente de comida e bebida. O resto da humanidade, aos milhões, viaja
junto às bagagens, sujeita ao frio de dezenas de graus abaixo de zero, semimortos
de fome, de sede e no desespero. Esmurram as paredes dos de cima, gritando: “Ou
repartimos o que temos nesta única nave espacial ou, num certo momento, acabará
o combustível, e pouco importam as classes, morreremos todos”. Mas quem os
escutará? Impassíveis, dormem depois de um lauto jantar.
Metaforicamente, esta é a situação real da Humanidade. Na
verdade, estamos perdidos e num voo cego. Como chegamos a esta situação
ameaçadora?
Temos experimentado dois modelos de produção e de
utilização dos bens e serviços naturais para atender às demandas humanas: o
socialismo e o capitalismo. Ambos fracassaram. Não cabe detalhar os dados. O
sistema do socialismo real era de economia de planejamento estatal
centralizado. Chegou a níveis razoáveis de igualdade-equidade nos campos da
educação, da saúde e da moradia, mas, por razões internas e externas,
especialmente por seu caráter ditatorial, não conseguiu resolver suas
contradições e ruiu.
O sistema capitalista neoliberal de mercado livre com parco
controle do Estado também fracassou em razão de sua lógica interna, a de
acumular de forma ilimitada bens materiais sem qualquer outra consideração.
Produziu duas injustiças graves: uma social a ponto de 20% dos mais ricos
controlarem 82,4% das riquezas da Terra e os 20% mais pobres devendo-se
contentar com 1,6%; e outra injustiça ecológica devastando inteiros ecossistemas e eliminando espécies de seres vivos na ordem entre 70-100 mil por ano. Este
sistema quebrou, em 2008, exatamente no coração dos países centrais.
O comunismo chinês é sui generis: pragmaticamente, combina
todos os modos de produção, desde o uso da força física das pessoas, dos
animais, até a mais alta tecnológica, articulando a propriedade
estatal com a privada ou mista, desde que o resultado final seja uma maior
produção com mínimo sentido de justiça social e ecológica.
Mas importa reconhecer que está crescendo o convencimento
bem fundado de que o sistema-Terra limitado em bens e serviços, pequeno e
superpovoado, já não suporta um projeto de crescimento ilimitado. Ele perdeu as
condições de repor o que lhe tiramos, por isso se torna cada vez mais
insustentável. Mas por ser uma superentidade viva, a Terra reage de
forma cada vez mais violenta: mudanças climáticas bruscas, furacões, tsunâmis,
degelo, desertificação espantosa, erosão da biodiversidade e um aquecimento
global que não para de aumentar. Quando vai parar esse processo? Se
continuar, para onde nos vai levar?
Somos urgidos a mudar de rumo, vale dizer, assumir novos
princípios e valores, capazes de organizar de forma amigável nossa relação para
com a natureza e para com a Casa Comum. O documento mais inspirador é
seguramente a Carta da Terra, nascida de uma consulta mundial que durou
oito anos, sob a inspiração de Michail Gorbachev e aprovada pela Unesco em 2003.
Ela incorpora os dados mais seguros da nova cosmologia que mostram a Terra como
um momento de um vasto universo em evolução, viva e dotada de uma complexa
comunidade de vida. Todos os seres vivos são portadores do mesmo código
genético de base, de sorte que todos são parentes entre si.
Quatro princípios axiais estruturam o documento: o respeito
e o cuidado pela comunidade de vida (1); a integridade ecológica (2); a justiça
social e econômica (3); a democracia, a não violência e a paz (4). Com
severidade adverte: “Ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns
dos outros, ou arriscamos a nossa destruição e a da diversidade de
vida” (preâmbulo).
As palavras finais do documento apelam para uma retomada da
humanidade: “Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a um novo
começo. Isso requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido
de interdependência global e de responsabilidade universal. Só assim
alcançaremos um modo de vida sustentável nos níveis local, regional, nacional e
global”(Conclusão).
Repare-se que não se fala de reformas, mas de um novo
começo. Trata-se de reinventar a humanidade. Tal propósito demanda um novo
olhar sobre a Terra (mente), vista como um ente vivo, Gaia, e uma nova relação
de cuidado e de amor (coração), obedecendo à lógica universal da
interdependência de todos com todos e da responsabilidade coletiva pelo futuro
comum.
Este é o caminho a seguir que servirá de carta de navegação
para a nave-Terra aterrissar segura num outro tipo de mundo.
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