Por Sérgio Abranches
Miriam, da Escola Municipal Paraguai, em Marechal Hermes, me fez a
pergunta definitiva em um debate sobre cidades sustentáveis no Rio de
Janeiro. É sustentável uma cidade que não tem saneamento básico para
todos, ambientes decentes de moradia e estudo, serviços de saúde de
qualidade para todos?
A resposta é um não firme e definitivo. Há, na pergunta da menina, a
perspicaz compreensão de que não faz sentido uma visão de
sustentabilidade que não tenha como centro o ser humano, a espécie
humana.
Ela vê com mais agudez as muitas insuficiências das abordagens da
questão da sustentabilidade, em particular das políticas de
sustentabilidade públicas e privadas, que a maioria dos adultos com
responsabilidade sobre o tema. O princípio da defesa da bioesfera não é a
proteção do planeta em si mesmo, mas das condições de sustentação da
vida humana nele. E não de vida humana em qualquer condição. Vida humana
com bem estar e segurança – alimentar, climática, social – para todos. A
visão puramente naturalista da sustentabilidade, no sentido de voltada
exclusivamente para a proteção da natureza, é tão equivocada quanto a
visão economicista que se quis dar à sustentabilidade na Rio+20, em que a
primazia é da economia.
Quando apontei, em comentário recente na CBN
que o compromisso da C40, uma coalizão de cidades da qual fazem parte
Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, era dos resultados mais concretos
da Rio+20, não o fiz para dizer que era suficiente para termos cidades
sustentáveis. Em comentários e posts mais antigos, eu havia falado sobre
“cidades amigáveis” e sobre como a urbanização vai requerer cidades sustentáveis voltadas para o bem estar. “Amigável” só pode se referir à pessoa humana. O valor central de todo esforço de sustentabilidade é humano.
A visão fundamental de uma nova sociedade sustentável, em convivência
equilibrada com a natureza, só faz sentido se for ancorada em novo
humanismo, que entenda a valorização do ser humano, sua proteção e
segurança como partes indissociáveis da proteção e valorização dos
recursos naturais e da biodiversidade que asseguram as condições para a
vida e o bem estar. Não é só o ambiente natural que se encontra
degradado. O ambiente social também, não só por suas insuficiências
físicas – de infraestrutura, serviços básicos, mobilidade – mas por suas
insuficiências humanas – desigualdades construídas, desrespeito pelo
outro, violência, guerras, exploração sexual, trabalho degradante. Quem
tolera e permite um ambiente social degradado, jamais promoverá a
sustentabilidade do ambiente natural.
O ecossistema humano, ou social, é parte integrante e central do
ecossistema planetário. Uma visão de proteção do ecossistema natural só
faz sentido para garantir o pleno desenvolvimento do ecossistema social.
Isso implica em qualidade de vida e igualdade de oportunidades para
todos não apenas terem acesso ao básico, mas aos meios necessários à
realização pessoal e à felicidade.
Uma cidade que reduz emissões, eletrifica com energia solar seus
estádios, mas deixa comunidades sem saneamento básico, sem assistência
médica e sem escola de qualidade, nunca será sustentável. A mudança do
regime de chuvas, que já ocorre por causa da mudança climática, faz com
que inundações em áreas sem saneamento, com esgoto a céu aberto, lixões,
propaguem doenças, que o sistema de saúde não cuidará apropriadamente.
Precariedade nunca é seletiva: áreas sem saneamento dificilmente terão
educação e saúde de qualidade, ou qualquer outro serviço eficiente e
eficaz de proteção social.
Uma cidade onde há escolas sem ventilação adequada, quentes demais no
verão tropical, frias demais no inverno, que não oferecem condições de
aproveitamento das crianças e jovens no limite máximo de seu potencial,
nem educação de qualidade, não é sustentável.
Quando falamos da necessidade de proteger a biodiversidade e de
evitar o empobrecimento da fauna e da flora, precisamos lembrar que
estamos também, e principalmente, perdendo diversidade humana e
empobrecendo a espécie humana. No Brasil perdemos exemplares valiosos da
espécie humana, da infância à flor da juventude e na maturidade. São
perdas causadas pela violência urbana, que está associada à
discriminação: as principais vítimas são os jovens negros. Perdas por
causa de mau atendimento de saúde.
Perdas de jovens mulheres, na maioria
negras, por causa de abortos induzidos em casa e sem condições médicas e
sanitárias. Perdas de exemplares preciosos da espécie humana em
quantidade absurda de acidentes de trânsito, grande parte decorrente de
transportes públicos precários e infraestrutura degradada.
Quando falamos no empobrecimento das florestas por causa do corte
seletivo, do desmatamento disfarçado, ou em decorrência da mudança
climática, precisamos refletir sobre o empobrecimento da espécie humana,
da sociedade humana. Esse empobrecimento humano ocorre quando a maioria
não tem acesso a educação de qualidade, a assistência médica de
qualidade, nutrição adequada, ambientes nos quais possam realizar seus
diferentes potenciais na plenitude.
Quando a elite é bem educada, tem seguro de saúde que lhe permite
atendimento de primeira, tem todas as oportunidade de desenvolvimento
pessoal e a maioria recebe educação de péssima qualidade, não tem
atendimento médico adequado, nem acesso às condições de desenvolvimento
pleno de seus talentos, estamos empobrecendo a maioria de nossa
sociedade humana.
Há um erro fundamental de concepção das políticas para os mais
“carentes”: dar-lhes o mínimo e condições para que continuem como estão,
em situação “melhorada”. Mas essa condição “melhorada” não lhes abre a
porta para realizarem seus anseios, para serem “outra coisa”,
perseguirem outras profissões às quais só a elite tem acesso. Essas
políticas “qualificam” as pessoas para exercerem profissões “práticas”,
para saírem do básico para o intermediário, quase como a lhes dizer que o
cume não lhes é possível. O que dizer do “luxo” de buscarem profissões
intelectuais, artísticas, científicas. E se a garota não quiser ser
doceira, nem costureira, quiser ser filósofa, ou escritora, ou física de
altas energias? E se o filho do seringueiro, não quiser ser seringueiro
ou artesão da borracha, mas climatologista, ou astrônomo?
Recentemente uma menina muito pobre, que estuda na PUC-Rio porque tem
bolsa integral, escreveu para me contar que havia conseguido um
notebook com a doação do pagamento por algumas aulas que eu havia dado
ao programa de bolsas da PUC. O notebook lhe permitiria estudar mais
ciência da computação em casa, para se preparar para uma profissão da
qual gosta, mas que escolheu exercer remotamente. Teria dificuldade de
ser empregada para trabalhar no ambiente de uma empresa por causa do
preconceito de que é vítima. Nem pensa em tentar, porque, provavelmente,
não se sente segura, nem disposta a enfrentar as dores da discriminação
diária, dos olhares de esguelha, da evidente distância que os outros
procuram manter.
Essa sociedade que força uma menina a trabalhar remotamente para não
ser vista, não é humana, nem sustentável. O trabalho remoto pode ser um
ganho e parte importante da sustentabilidade, mas tem que ser por livre
escolha, nunca como fuga da discriminação, uma espécie de degredo,
autocondenação à solidão e ao isolamento por falta de acesso à
convivência social. Acho que histórias como esta e perguntas como a de
Miriam definem com clareza o que é desenvolvimento humano e como ele é
condição indispensável à noção de sustentabilidade em um mundo melhor.
Fonte: Ecopolitica
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