segunda-feira, 18 de maio de 2015

É preciso abrir os olhos para os massacres. E agir

Crianças buscam água perto de um campo de deslocados em Garnava, no Iraque. Foto: ACNUR/S. Baldwin

Por Washington Novaes 

Por mais que tentem viver isoladas, protegidas, indiferentes aos dramas, a cada dia muitas pessoas se sentem assaltadas – via comunicação – pelos dramas de várias partes do mundo. Podem ser os da África, do Sudeste da Ásia, de outras partes da América Latina. E, como relatou o correspondente deste jornal na Suíça, o competente Jamil Chade (4/5), “a resposta da ONU para crises globais é inconsistente”, lembrando o historiador Stephen Schlesinger, que há poucas semanas esteve por aqui fazendo conferências. Na opinião dele, enquanto houver na ONU direito de veto para Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-Bretanha, “o risco será sempre de não conseguir agir diante do massacre”. Quem propõe, por exemplo, uma solução para a guerra civil na Síria, onde já morreram 220 mil pessoas? Quem tem solução para os dramas de várias partes da África e para a morte de milhares de pessoas que dali tentam fugir para a Europa?

Nas últimas semanas têm sido frequentes notícias sobre imigrantes clandestinos que tentam chegar à Itália e são aprisionados. Muitos deles, levados por facções da Máfia italiana, à qual pagam pelo transporte, mais grande parte dos euros que recebem depois por trabalhos aviltantes. Segundo a ONU (Folha de S.Paulo, 2/5) só no ano passado milhões de pessoas se deslocaram de seus países por causa de “conflitos e violências”. Na África, porque “suas terras são progressivamente ocupadas (Eco-Finanças, 24/4) por empresas que expulsam os moradores” para extrair minérios, principalmente diamantes e petróleo, ou instalar grandes plantações.

É inevitável que venha à memória o livro do jornalista Ryszard Kapuscinski, que durante quatro décadas foi correspondente na África de jornais poloneses. Em Ébano – Minha Vida na África ele relata histórias terríveis do que viu em vários países. Alguns jornalistas o acusaram de “fantasioso”. Mas a realidade parece inexorável. Como o que testemunhou sobre a guerra que envolveu Ruanda, o ex-Congo, Burundi e mais vizinhos, em que perderam a vida milhões de pessoas, disputando áreas férteis das quais haviam sido antes expulsos por mineradoras de outros países que as haviam ocupado. Mas quase nada disso chegou pela maior parte da comunicação ao resto do mundo.

Neste momento estão em cena conflitos no Zimbábue, onde fazendeiros expulsam antigos ocupantes de milhares de hectares; em Uganda, onde se acentua a ocupação de terras por empresas petrolíferas e mineradoras; em Moçambique, onde o Estado é o único proprietário de terras, mas concede usufruto aos grandes; na Tanzânia, na Nigéria, na Somália, na Eritreia, por motivos parecidos. Zeid Ra’ad, alto dirigente da ONU, tem dito (FP, 21/4) que a União Europeia precisa de “uma abordagem mais sofisticada, mais corajosa (…). Está virando as costas para os imigrantes mais vulneráveis no mundo e corre o risco de tornar o Mediterrâneo um grande cemitério” (onde morrem fugitivos). A seu ver, é indispensável ter políticas para o curto prazo que autorizem a entrada dos imigrantes africanos, proporcionem a eles trabalho qualificado, concedam asilo, atuem para que possam viver com suas famílias.

Parece incontestável. Segundo o Ministério Público italiano (Estado, 21/4), nada menos que 1 milhão de sírios e africanos aguardam autorização dos países para onde querem imigrar. Federica Mogherini, chefe da diplomacia da União Europeia, diz que “não existe mais álibi para a Europa. Temos o dever moral e político de assumir nosso papel. O Mediterrâneo é nosso mar e precisamos agir juntos como europeus”. Esse mesmo tom foi seguido neste jornal por Gilles Lapouge: “O Mediterrâneo foi o esplendor do mundo, mas neste início de terceiro milênio ele é a vergonha, a miséria e o horror”. Opinião compartilhada por Martin Schulz, presidente do Parlamento europeu: “É uma vergonha e uma confissão de quanto os países fogem de suas responsabilidades”.

Notícias dizem que a organização Mare Nostrum resgatou no mar, em 2014, cerca de 150 mil fugitivos; 500 mil esperam a oportunidade na Líbia. A Triton recebe do governo italiano alguns milhares de euros por mês para abrigar refugiados da África. “Essa rota é a mais mortal do mundo”, já disse o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon (FP, 21/4).

As razões são muitas. Angola, sede de grandes empresas petrolíferas e mineradoras de diamantes, tem a maior taxa no mundo de morte de crianças até 5 anos de idade – 150 mil morreram no ano passado. 25% de suas crianças são muito desnutridas. E o governo propôs este ano corte de 33% no orçamento da saúde (The New York Times, 20/3). Aids é a principal causa de morte entre adolescentes, segundo a ONU (AP, 18/2). E a África Subsaariana é o pior lugar.

Uma boa notícia: o continente africano afinal está livre do surto de Ebola – que matou mais de 10 mil pessoas na Libéria, na Serra Leoa e no Senegal – graças à Organização Mundial de Saúde (OMS) e à cooperação de alguns países. Mas a própria OMS adverte que já identificou 16 vírus transmissores no continente. E que agora há outras grandes ameaças. Ela mesma identificou uma “ameaça global” na resistência a antibióticos: “Doenças que eram curadas com relativa facilidade podem voltar e matar 10 milhões de pessoas até 2050”, com bactérias que provocam pneumonia, diarreia e infecções. Só em 2013 foram 480 mil casos de tuberculose em cem países. E não há novos medicamentos desde 1987. São centenas de milhares de pessoas que podem ser atingidas agora. Na Guiné são 460 mil; na Libéria, 170 mil; em Serra Leoa, 280 mil (FAO, 17/12/2014).

Como ficará o Brasil diante desse panorama?

PS: Este texto já estava escrito quando a União Europeia pediu ao Conselho de Segurança da ONU que apoie seu plano para conter “o fluxo mortífero de imigrantes” no Mediterrâneo, “desmantelando organizações de tráfico humano e destruindo seus navios” (Estado, 12/5). 

(O Estado de S. Paulo/ #Envolverde)
Washington Novaes é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, turma de 1957, e jornalista há 53 anos.


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