Crianças buscam água perto de um campo de deslocados em Garnava, no Iraque. Foto: ACNUR/S. Baldwin
Por Washington Novaes
Por mais que tentem viver isoladas, protegidas, indiferentes aos
dramas, a cada dia muitas pessoas se sentem assaltadas – via comunicação
– pelos dramas de várias partes do mundo. Podem ser os da África, do
Sudeste da Ásia, de outras partes da América Latina. E, como relatou o
correspondente deste jornal na Suíça, o competente Jamil Chade (4/5), “a
resposta da ONU para crises globais é inconsistente”, lembrando o
historiador Stephen Schlesinger, que há poucas semanas esteve por aqui
fazendo conferências. Na opinião dele, enquanto houver na ONU direito de
veto para Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-Bretanha, “o
risco será sempre de não conseguir agir diante do massacre”. Quem
propõe, por exemplo, uma solução para a guerra civil na Síria, onde já
morreram 220 mil pessoas? Quem tem solução para os dramas de várias
partes da África e para a morte de milhares de pessoas que dali tentam
fugir para a Europa?
Nas últimas semanas têm sido frequentes notícias sobre imigrantes
clandestinos que tentam chegar à Itália e são aprisionados. Muitos
deles, levados por facções da Máfia italiana, à qual pagam pelo
transporte, mais grande parte dos euros que recebem depois por trabalhos
aviltantes. Segundo a ONU (Folha de S.Paulo, 2/5) só no ano passado
milhões de pessoas se deslocaram de seus países por causa de “conflitos e
violências”. Na África, porque “suas terras são progressivamente
ocupadas (Eco-Finanças, 24/4) por empresas que expulsam os moradores”
para extrair minérios, principalmente diamantes e petróleo, ou instalar
grandes plantações.
É inevitável que venha à memória o livro do jornalista Ryszard
Kapuscinski, que durante quatro décadas foi correspondente na África de
jornais poloneses. Em Ébano – Minha Vida na África ele relata histórias
terríveis do que viu em vários países. Alguns jornalistas o acusaram de
“fantasioso”. Mas a realidade parece inexorável. Como o que testemunhou
sobre a guerra que envolveu Ruanda, o ex-Congo, Burundi e mais vizinhos,
em que perderam a vida milhões de pessoas, disputando áreas férteis das
quais haviam sido antes expulsos por mineradoras de outros países que
as haviam ocupado. Mas quase nada disso chegou pela maior parte da
comunicação ao resto do mundo.
Neste momento estão em cena conflitos no Zimbábue, onde fazendeiros
expulsam antigos ocupantes de milhares de hectares; em Uganda, onde se
acentua a ocupação de terras por empresas petrolíferas e mineradoras; em
Moçambique, onde o Estado é o único proprietário de terras, mas concede
usufruto aos grandes; na Tanzânia, na Nigéria, na Somália, na Eritreia,
por motivos parecidos. Zeid Ra’ad, alto dirigente da ONU, tem dito (FP,
21/4) que a União Europeia precisa de “uma abordagem mais sofisticada,
mais corajosa (…). Está virando as costas para os imigrantes mais
vulneráveis no mundo e corre o risco de tornar o Mediterrâneo um grande
cemitério” (onde morrem fugitivos). A seu ver, é indispensável ter
políticas para o curto prazo que autorizem a entrada dos imigrantes
africanos, proporcionem a eles trabalho qualificado, concedam asilo,
atuem para que possam viver com suas famílias.
Parece incontestável. Segundo o Ministério Público italiano (Estado,
21/4), nada menos que 1 milhão de sírios e africanos aguardam
autorização dos países para onde querem imigrar. Federica Mogherini,
chefe da diplomacia da União Europeia, diz que “não existe mais álibi
para a Europa. Temos o dever moral e político de assumir nosso papel. O
Mediterrâneo é nosso mar e precisamos agir juntos como europeus”. Esse
mesmo tom foi seguido neste jornal por Gilles Lapouge: “O Mediterrâneo
foi o esplendor do mundo, mas neste início de terceiro milênio ele é a
vergonha, a miséria e o horror”. Opinião compartilhada por Martin
Schulz, presidente do Parlamento europeu: “É uma vergonha e uma
confissão de quanto os países fogem de suas responsabilidades”.
Notícias dizem que a organização Mare Nostrum resgatou no mar, em
2014, cerca de 150 mil fugitivos; 500 mil esperam a oportunidade na
Líbia. A Triton recebe do governo italiano alguns milhares de euros por
mês para abrigar refugiados da África. “Essa rota é a mais mortal do
mundo”, já disse o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon (FP, 21/4).
As razões são muitas. Angola, sede de grandes empresas petrolíferas e
mineradoras de diamantes, tem a maior taxa no mundo de morte de
crianças até 5 anos de idade – 150 mil morreram no ano passado. 25% de
suas crianças são muito desnutridas. E o governo propôs este ano corte
de 33% no orçamento da saúde (The New York Times, 20/3). Aids é a
principal causa de morte entre adolescentes, segundo a ONU (AP, 18/2). E
a África Subsaariana é o pior lugar.
Uma boa notícia: o continente africano afinal está livre do surto de
Ebola – que matou mais de 10 mil pessoas na Libéria, na Serra Leoa e no
Senegal – graças à Organização Mundial de Saúde (OMS) e à cooperação de
alguns países. Mas a própria OMS adverte que já identificou 16 vírus
transmissores no continente. E que agora há outras grandes ameaças. Ela
mesma identificou uma “ameaça global” na resistência a antibióticos:
“Doenças que eram curadas com relativa facilidade podem voltar e matar
10 milhões de pessoas até 2050”, com bactérias que provocam pneumonia,
diarreia e infecções. Só em 2013 foram 480 mil casos de tuberculose em
cem países. E não há novos medicamentos desde 1987. São centenas de
milhares de pessoas que podem ser atingidas agora. Na Guiné são 460 mil;
na Libéria, 170 mil; em Serra Leoa, 280 mil (FAO, 17/12/2014).
Como ficará o Brasil diante desse panorama?
PS: Este texto já estava escrito quando a União Europeia pediu ao
Conselho de Segurança da ONU que apoie seu plano para conter “o fluxo
mortífero de imigrantes” no Mediterrâneo, “desmantelando organizações de
tráfico humano e destruindo seus navios” (Estado, 12/5).
(O Estado de S. Paulo/ #Envolverde)
Washington Novaes é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, turma de 1957, e jornalista há 53 anos.
Fonte: O Estado de S. Paulo.
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