segunda-feira, 7 de abril de 2014

Natureza humana: sexualidade e família

Por Leonardo Boff

Na consulta mundial sobre familia e sexualidade promovida corajosamente pelo papa Francisco, sempre volta à tona certa compreensão da lei natural e da natureza humana. Mais que oferecer uma solução, pretendemos problematizar a questão.

Por uma parte pode-se afirmar que, sob certos aspectos, a natureza humana é um dado singular,  sempre  aberto, pois  veio, junto com outros seres, se formando ao longo do processo evolutivo há milhões de anos e ainda não se encontra pronto. É um dado feito.

A partir desta constatação, importa reconhecer que o ser humano é uma espécie que possui constantes antropológicas  que geram certo tipo de comportamento singular, propriamente humano, caracterizado pela fala, pela liberdade, pela criatividade, pela responsabilidade, pelo amor, pelo cuidado e pela sua dimensão de abertura  total. Sua realidade concreta vem ainda dramatizada pelo fato de ser simultaneamente sapiens e demens. Somos capazes de amor e de ódio, de guardiães da vida e de seus destruidores. Tal fato dramatiza qualquer juízo ético que deve incorporar a tolerância e a misericórdia. 
         
Por outra parte, a natureza humana é histórica, porque é trabalhada pela liberdade humana que lhe dá configurações culturais e a mantém aberta a novas formas futuras. Esse caráter histórico faz com que nenhuma compreensão compreenda tudo do ser humano.  Só o compreende dentro de limites históricos.

 Não se trata apenas de saber o que é dado mas, também, de constatar como o dado é  feito, refeito, entendido, e reinterpretado. Ademais, cabe compreender o potencial e o utópico também como  pertencentes ao dado da  natureza humana enquanto humana, fazendo que sempre alimente novos sonhos e procure realizá-los. Portanto, possui características de um sistema aberto, e não fechado, com vasta capacidade de criação. Aplicando esta compreensão ao ser humano: ele não é um projeto de médio ou de longo prazo, mas  um projeto tendencialmente infinito. Por isso,  o ser humano sente que deve ir além dele mesmo, deve se autossuperar e se autotranscender.  Só assim será radicalmente humano.



Dito numa palavra, o ser humano é um ser de relações ilimitadas. Ele é, portanto, um em si relacionado. Filosoficamente, é uma pessoa, e como tal um ser de relação com todas as realidades possíveis.  

As tendências e as paixões ou o seu capital de desejo e seu complexo universo de impulsos não indicam, concretamente, nenhuma norma de ação concreta. Esse conjunto de energias pede uma canalização para onde elas devem ser  orientadas. É  aqui que entra a liberdade humana e sua capacidade de elaborar um projeto de vida.

Esse projeto de vida se orienta por valores. Esses valores são bons só para mim ou o são para todos? Aqui vale a proposição de Kant: o que é bom para mim deve poder ser universalizado. O projeto de vida põe em ação a liberdade (o que fazer e como fazer) e a responsabilidade (quais são as consequências de meus atos). Sem liberdade e responsabilidade não há ética humana em nenhum lugar do mundo. A liberdade como  capacidade de autodeterminação e a responsabilidade como sentir que pode afetar a outros e ser afetado são dados comuns da natureza humana.

No fundo, o sentido último da ética é fazermo-nos mais plenamente humanos no sentido de fazermo-nos melhores a nós mesmos e de criar condições para que outros sejam também melhores junto conosco.

Apliquemos esta visão da natureza humana aos temas relativos à família e à sexualidade. Partimos do fato de que há algo de comum: todos somos igualmente humanos. Há também há algo de distinto: somos humanos no modo chinês, ianomâmi, mapuche e brasileiro. A diferença não destrói a unidade de base. Apenas mostra a fecundidade desta natureza coparticipada, pois ela só se dá na medida em que se realiza de diferentes formas. E se realiza cada vez de forma limitada, por isso aberta para os lados (reconhecendo outras realizações) e para o futuro (acolhendo outras possíveis concretizações).

Nesta quadra nova da consciência globalizada na qual temos acesso a tantas diferenças, importa entender as dois dados como diferentes e complementares. Nenhum tem o direito de se impor aos demais; devem existir como  diferentes e serem aceitos com tais.   

Aplicadas estas reflexões ao tema da família e da sexualidade, devemos dizer: importa respeitar as diferenças, identificar os elementos comuns e aprender a conviver com distintas morais e formas de família e de sexualidade. Mas sob uma condição: todas devem tratar humanamente o ser humano, nunca fazê-lo objeto mas um ser autônomo com valor em si mesmo. A partir daí estabelecer o diálogo, fazer as críticas e ver como podemos todos nos tratar humanamente, com amor e respeito, de forma que possamos sempre ser melhores. É o mínimo do mínimo de uma possível ética humanitária, hoje  tão necessária.


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