Habitação é o
assunto do momento no Rio. Na praia, no ônibus, nos jantares, só se ouve
falar disso. Há muitos anos a febre especulativa pouco a pouco fez
aumentar os preços e, por consequência, a pressão sobre os cariocas que
consagram agora uma grande parte de seu orçamento para isso.
Início
de setembro. Toda noite o Brasil vibra com os episódios de Avenida
Brasil, a telenovela que opôs durante seis meses a morena Rita à sua
madrasta, a loira Carminha. Uma cresceu em uma zona da periferia popular
do Rio de Janeiro, abandonada pela outra, que vendeu a casa do pai,
morto na Avenida Brasil, símbolo deste país de desigualdades. Por trás
dessa intriga, das mais básicas, se trama outra história: “É a
preparação psicológica de uma parte da população, a classe média dos
bairros chiques da zona sul do Rio, para o fato de que logo estarão se
mudando para a zona norte”, analisa Eduardo Granja Coutinho, professor
de Ciência da Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Se
acreditarmos nisso, um fenômeno social televisual pode então ocultar
outro, menos virtual: o aumento dos preços que fez do Rio um imenso jogo
de Banco Imobiliário. Uma das músicas tema do folhetim não se intitula
“Meu lugar”?
Habitação é o assunto do momento no Rio. Na praia, no
ônibus, nos jantares, só se ouve falar disso. Há muitos anos a febre
especulativa pouco a pouco fez aumentar os preços e, por consequência, a
pressão sobre os cariocas que consagram agora uma grande parte de seu
orçamento para isso. Entre janeiro de 2008 e julho de 2012, o Rio
conheceu um aumento de 380% nos preços de venda e de 108% nos de
locação. Por falta de recursos, alguns pensam até em se mudar para
bairros onde nunca puseram os pés, as favelas que as autoridades
decidiram metodicamente “pacificar” (ver quadro). E com ainda mais
vigor, já que é preciso preparar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas
de 2016.
Vidigal é um morro muito conhecido de todos os cariocas,
já que se situa de frente para o mar, na continuidade do Leblon e de
Ipanema. No dia 13 de novembro de 2010, as tropas da Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP) tomaram o lugar. A regra mudou. Há pouco mais de um
ano, os meninos ainda andavam por lá com armas de grosso calibre; hoje,
não param de passar policiais na Estrada do Tambá, a artéria principal e
única via de acesso desse emaranhado de ruelas asfaltadas, de quebradas
de tijolo e reboco. Não é a única mudança visível: “A coleta de lixo
está funcionando, a eletricidade também, e tem até um caixa eletrônico
em três línguas… Os serviços públicos voltaram”, constata o capitão
Fábio, responsável pela UPP local. E, pelos cartazes que anunciam
demolições e reformas, outras mudanças devem acontecer nessa febre de
expansão imobiliária.
Na associação de moradores do bairro,
comemora-se o retorno à ordem. Mas seu presidente Sebastião Alleluia
aponta outros perigos: “Hoje estamos entrando em uma nova realidade, já
que nossos terrenos são agora desejados pelo capital. A pressão se
tornou imobiliária, e a especulação, nossa realidade. É apenas o começo:
vemos desembarcar brasileiros e principalmente estrangeiros, trazidos
pela crise europeia e interessados no potencial de nossos bairros. Um
apartamento dúplex situado no Baixo Vidigal, estimado em R$ 50 mil há um
ano, se negocia hoje por R$ 250 mil!”.
O Vidigal está na moda, um
pouco como o que aconteceu com Santa Teresa no início dos anos Lula
(2003-2010), um bairro popular hoje habitado por artistas vindos do
mundo inteiro, condomínios superprotegidos, pousadas com selo de
qualidade e restaurantes da moda. O diretor de teatro Guti Fraga,
diretor da associação Nós do Morro, que ele implantou em 1986 para
desenvolver ali um projeto de integração pela cultura, também conheceu
os anos em que coabitavam o bairro – reconhecido por suas ruas calçadas e
suas habitações legais, autenticadas como tais pela municipalidade – e a
favela, zona “fora do cadastro” cujas manchas vermelhas pouco a pouco
comeram o verde do morro. Ao lado do Leblon, a favela Praia do Pinto foi
incendiada em 1969 para expurgar os cerca de 20 mil pobres que viviam
ali, realocados nos complexos de conjuntos habitacionais, como a
sinistra Cidade de Deus.
No Vidigal, a ameaça está de volta, e seu
cavalo de Troia se chama pacificação. E Fraga aponta o restaurante
francês que deve ser aberto ali em pouco tempo: “Será que vai ser para
os moradores daqui?”. O projeto de hotel cinco estrelas “vai acolher as
pessoas do Nordeste (a região pobre de onde vem a maioria dos moradores
do Vidigal)?”. Como confia um capitão da polícia, “o Vidigal se tornou
uma atração turística onde os europeus vêm tirar fotos bonitas”. Ou
investir nesse terreno cujo valor está em alta…
“No Rio, mais de 2
milhões de pessoas vivem em mais de novecentas favelas: tudo isso
constitui um bom negócio para quem está preparado para a aventura e tem a
capacidade de antecipar a mudança estrutural de uma cidade em plena
mutação”, observa Luiz César Queiroz Ribeiro, diretor do Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) do Observatório das
Metrópoles. Seu laboratório universitário se interessou pelas questões
da propriedade territorial no Rio, um caso de exßemplo para todo um país
onde muitos, ricos ou pobres, se instalaram sem base legal, num modo de
espoliação (um rico toma posse de um terreno pela força) ou invasão
(pobres ocupam um espaço pelo grande número). “O Brasil é a bola da vez.
Toda essa especulação imobiliária que se desloca no mundo, do Sudeste
Asiático à Espanha, se instala hoje aqui.” A economia – que parece
estável comparada com a tempestade que atravessam as do “centro” – atrai
ainda mais os investidores porque o imobiliário continua barato. “Desde
2005”, continua Ribeiro, “esse movimento de fundo se instala, se
apoiando no turismo e na perspectiva dos megaeventos. Num tal contexto
de especulação urbana clássica, controlar o território é também dar
garantias para o capital. É preciso então regularizar e regular a
ocupação dos terrenos.” O objetivo principal? “Permitir que o mercado
tenha acesso a essas zonas informais e então estabelecer bases jurídicas
da propriedade territorial.” Ou, para dizer com outras palavras,
modernizar o país para permitir aos investidores se instalarem melhor.
Assim, para favorecer futuras transações, as autoridades colocaram em
ação um programa de regularização imobiliária, nessas favelas que o
cadastro ignorava pura e simplesmente desde uma lei de 1937 (revogada em
1984 sem que a situação dos terrenos tenha sido realmente esclarecida).
A revista Veja de 4 de julho de 2012 comemorava que “num raio de 500
metros no entorno da UPP do Vidigal os preços aumentaram 28% a mais que
no resto da cidade”. A tal ponto que é cada vez mais difícil para os
cariocas da classe B, que têm boas condições financeiras,1 se instalarem
ali.
Durante muito tempo, as favelas foram consideradas
provisórias. Era admitido que elas deveriam desaparecer com o
desenvolvimento. Mas como este demorou a chegar, o governo decidiu ao
mesmo tempo fazê-las desaparecer e deixá-las surgir aqui e ali. Sérgio
Magalhães, secretário da cidade de 1993 a 2000 e atual presidente do
Instituto dos Arquitetos, participou do programa Favela Bairro,
frequentemente citado como exemplo e que se ocupava de 155 favelas. “Em
1993, três, quatro gerações tinham crescido nesses terrenos: a situação
já não era, claramente, transitória. Era preciso reconhecer esse estado
de coisas e fazer das favelas verdadeiros bairros.” Depois de terem
favorecido o deslocamento das populações para as periferias – entre 1962
e 1974, mais de 140 mil habitantes foram enviados para a periferia, com
oitenta favelas apagadas do Rio –, os poderes públicos finalmente
consideraram construir um futuro no local, levando em conta a história e
a opinião dos moradores. O Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) consagrou US$ 600 milhões para isso, aos quais se acrescentaram
US$ 250 milhões do governo federal.
Vinte anos depois dessa
primeira tentativa de reorganização, seguida por outros programas
(Bairrinho, Morar Legal e Novas Alternativas), associações e
particulares deram início a procedimentos para obter títulos de
propriedade oficiais. Mais de duzentos teriam sido oficialmente
emitidos, enquanto milhares aguardam. Ninguém sabe quantos, já que
ninguém sabe quantas pessoas vivem ali. Vinte mil, 40 mil, 60 mil
habitantes? Roque faz parte desse grupo desde 1976. Natural da Bahia,
ele fica feliz com o interesse crescente dos gringos, fonte de lucro:
uma vizinha multiplicou por cinco o valor de seu imóvel. No entanto,
para ele, está fora de questão deixar sua casa, um minúsculo quarto e
sala construído por ele mesmo em 1995. O septuagenário faz valer seu
direito de solo – além do sentimento de pertencimento a uma comunidade, o
que não tem preço. “Na época, ganhei um recibo da associação de
moradores. Hoje eu aguardo o título de propriedade oficial. Isso vai dar
um pouco de dinheiro aos meus filhos quando eu morrer, mas eu não quero
deixar meu bairro; é a minha vida.”
Essa regularização é também
sinônimo de integração ideológica dessas zonas fragmentadas, antes
regidas por outras leis imobiliárias, erigidas pelos próprios moradores.
O sociólogo Jailson de Souza e Silva, cabeça pensante do Observatório
das Favelas, vê aí “a base de um aburguesamento”. “Muitos são tentados a
vender bens que agora têm um valor verdadeiro. Eu defendo que a última
coisa a dar aos habitantes da favela é um título de propriedade.” Para
ele, possuir um título oficial é ter acesso à possibilidade de cedê-lo e
então fazer, por sua vez, o jogo do “mercado”. “Eike Batista, o homem
mais rico do Brasil, que investiu benevolamente milhões nos equipamentos
da UPP, é proprietário de grandes grupos imobiliários. Ele tem todo o
interesse em financiar essa política, da qual ele terá os dividendos num
segundo momento, ao se tornar proprietário de uma parte desses
territórios.” Para Silva, a solução está longe das lógicas
especulativas…
Esse não é o ponto de vista do prefeito, Eduardo
Paes, eleito com quase 65% dos votos. Um plebiscito para esse político
centrista que, além do apoio do PT, se beneficia do voto das favelas,
fortalecido por um balanço que o enaltece: ele será sempre o prefeito da
pacificação e o artesão de grandes canteiros urbanísticos, entre os
quais o exemplar projeto Porto Maravilha, que visa transformar todo o
bairro portuário, não muito distante do centro histórico e por muito
tempo desaconselhado à noite, em uma gigantesca zona comercial e
turística, com moradias renovadas e ateliês de artistas. Centro de
serviço e maior polo naval, principalmente com o petróleo, o Rio encarna
mais que qualquer outra cidade a identidade brasileira aos olhos do
mundo inteiro. Uma visão que foi confirmada pela classificação pela
Unesco em julho de 2012 da Cidade Maravilhosa como patrimônio da
humanidade. “O Rio vai se tornar a vitrine comercial do marketing
brasileiro”, explica Ribeiro. “Será o cartão de visitas do país.” Desde
2011, na saída do aeroporto, um grande muro antirruído permite esconder a
miséria da Avenida Brasil.
Rumo à cidade-empresa
“Para
a preparação das Olimpíadas de 2016”, explica o arquiteto Carlos
Fernando Andrade, membro do PT, “o modelo foi Barcelona. É uma obsessão
desde 1993! Desde essa data os catalães vêm aqui vender seus serviços.
Sua estratégia foi pensar a cidade como uma empresa. E, dentro dessa
lógica, era preciso uma sucessão de grandes acontecimentos.”
Em
2013, o Rio de Janeiro vai acolher a Jornada Mundial da Juventude (JMJ),
depois do encontro Rio+20 em 2012 e antes da Copa de 2014. Luiz César
Queiroz Ribeiro percebe nessas grandes readequações programadas uma
mudançaprofunda da identidade original do Rio, onde as classes
socialmente afastadas viviam até agora em certa proximidade geográfica.
“Isso favorecia uma convivência feita de conflitos e de convergências,
um diálogo inédito que é cristalizado pelo samba. O futuro, ao
contrário, sugere uma cidade estratificada em função da renda, como
todas as outras. E nessa perspectiva os dias das favelas estão contados.
A arquitetura talvez permaneça, como algo exótico, mas a dinâmica do
mercado vai engolir os habitantes, consumidores em potencial.”
O
Partido Verde (PV) é um dos mais virulentos a respeito desse balanço
enganador, denunciando toda uma série de operações duvidosas com relação
às Olimpíadas que jogam o jogo da especulação: a escolha, por exemplo,
de privilegiar o ônibus e não o metrô, sabendo que as empresas privadas
que detêm os ônibus são apoiadoras financeiras dos políticos. Fernando
Gabeira, que perdeu o segundo turno das eleições municipais em 2008, se
mostra categórico: “Alguns tiveram informações de dentro sobre a
aplicação da pacificação.
Eles investiram antecipadamente no entorno
imediato das zonas pacificadas. Os riscos são administrados de modo a
concentrá-los nos bairros mais pobres da periferia. Os hospitais
psiquiátricos são implantados na zona oeste, assim como as
penitenciárias e os lixões. Com a pacificação da zona sul, os
traficantes se mudaram para a periferia”.
Consequência: a cidade
cresce ainda e sempre, empurrando seus limites administrativos, mas
também seus problemas. Apesar de seus quase 12 milhões de habitantes, a
Grande Rio de Janeiro conheceu uma vertiginosa queda em sua densidade: 8
mil habitantes por quilômetro quadrado, duas vezes menos do que em
1960! Sérgio Magalhães detecta aí o calcanhar de aquiles do Rio: “A
expansão da cidade desemboca em uma equação impossível para os serviços
públicos. Torná-los acessíveis para todos representa um custo estrutural
enorme!”.
No entanto, existem soluções para o problema
habitacional que diz respeito a mais de 400 mil pessoas, segundo Marcelo
Braga Edmundo, coordenador nacional da Central de Movimentos Populares.
“Dez por cento do déficit nacional de habitações se concentra no Rio. A
solução não reside nas construções na periferia, mas nas ocupações dos
prédios vazios. É uma escolha política. Eduardo Paes favoreceu
investimentos públicos que beneficiarão a esfera privada. E as
Olimpíadas, que poderiam beneficiar a todos, se anunciam como uma
gigantesca catástrofe para as classes populares, que vão pagar um alto
preço. Em seu nome, passam por cima do plano diretor estabelecido pela
lei. Ao mesmo tempo, o IPTU progressivo [calculado em função dos imóveis
privados vazios] não é aplicado.” Seria, no entanto, uma solução legal
para resolver uma parte do problema das desigualdades no que diz
respeito à habitação. (J.D.)
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