A construção de grandes centrais
hidrelétricas no Brasil coloca governo e empresas em numerosas
escaramuças com ambientalistas, indígenas e movimentos sociais. Mas a
geradora binacional de Itaipu é uma exceção, onde se pratica a
colaboração. Com um conjunto de 65 ações ambientais, sociais e
produtivas, o programa Cultivando Água Boa (CAB) é dirigido e apoiado
por ativistas. Setores governamentais estudam usá-lo como modelo em
outros grandes projetos de infraestrutura, para mitigar impactos e
conflitos.
Comparado com o que ocorre nas demais hidrelétricas, “é um avanço”,
reconhece Robson Formica, coordenador do Movimento de Afetados por
Represas (MAB) no Estado do Paraná, em cujo extremo oeste fica a
gigantesca usina energética. A Itaipu Binacional, empresa que opera a
hidrelétrica compartilhada por Brasil e Paraguai, decidiu garantir a
geração elétrica eficiente no longo prazo, cuidando da baía do rio
Paraná para assegurar água em quantidade e com qualidade.
Isso facilita convergências com o ambientalismo. Mais de 80% da
eletricidade do Brasil provém dos rios, por isso sua segurança
energética depende das chuvas e do melhor aproveitamento possível de
suas águas. O CAB de Itaipu foi lançado em 2003, duas décadas após ser
enchida a represa de 1.350 quilômetros quadrados (que expulsou milhares
de famílias camponesas e indígenas da área) e quando a empresa havia se
consolidado como a maior geradora mundial de eletricidade.
Para Formica, essas ações são “importantes, mas limitadas e
isoladas”. Além disso, “não estabelecem uma política de desenvolvimento
local, nem uma mudança estrutural no território”, ponderou o dirigente
do MAB, forte crítico das hidrelétricas e que estima em um milhão as
pessoas deslocadas por causa delas no Brasil.
A demanda de que a empresa assuma funções que cabem ao Estado ganhou
força diante da proliferação de megaprojetos que transtornam de forma
abrupta extensos hábitats. Além disso, leis ambientais tentam impor-lhes
o pagamento de compensações, que costumam cobrir omissões dos serviços a
cargo do Estado.
No caso de Itaipu, essa exigência se justifica particularmente.
Trata-se de uma empresa singular, duplamente estatal e com faturamento
de US$ 3,797 bilhões em 2012. Seus domínios, em terras e águas
fronteiriças do Brasil e do Paraguai, contêm a gigantesca usina, sua
represa, 104 mil hectares de conservação ambiental, a Universidade de
Integração Latino-Americana e o Parque Tecnológico de Itaipu.
O programa CAB se estende por toda a bacia do Paraná 3, a área
brasileira ao longo dos 170 quilômetros da represa. Inclui 29
municípios, com superfície de 8.339 quilômetros quadrados e um milhão de
habitantes. Suas 65 ações incluem desde assistência a indígenas,
aquicultura, plantas medicinais e biogás até educação ambiental, em uma
aparente dispersão que um eixo central, cuidar da água, interliga em um
conjunto concertado.
Dessa forma, no desenvolvimento rural sustentável a prioridade é a
agricultura orgânica, para reduzir os pesticidas que contaminam a
represa. “Começamos com 186 famílias, hoje são 1.180” as participantes e
há cerca de duas mil hortas orgânicas, detalhou Nelton Friedrich,
diretor de Coordenação e Meio Ambiente de Itaipu. Também foi criada a
Plataforma Itaipu de Energias Renováveis, para proteger os rios dos
dejetos de animais. Ao convertê-los em biogás, com o qual gera
eletricidade, cria-se outra fonte de renda para os agricultores e
evita-se a contaminação das águas.
A bacia, na qual predomina a agricultura familiar, com 26 mil
minifúndios, concentra milhões de porcos, aves e bovinos. Seus
excrementos, se acumulados na represa, provocariam um excesso de
nutrientes, e a consequente proliferação de plantas aquáticas, que, ao
apodrecerem, retirariam oxigênio das águas. É o fenômeno da
eutrofização, explicou Cícero Bley, superintendente de Energias
Renováveis de Itaipu. “A contaminação por resíduos orgânicos é mais
comum do que a de agrotóxicos” e em alguns casos obriga que seja feita
limpeza permanente nas represas, acrescentou.
A renovação da água na represa demora cerca de 30 dias, o que agrava a
preocupação. No rio Madeira, no Estado de Rondônia, onde acabam de
entrar em operação as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, bastam
dois ou três dias, comparou Domingo Fernandez, pesquisador responsável
de fauna itícola em Itaipu. Por isso, o saneamento e o reflorestamento
de sua margem são necessidades evidentes para manter produtiva a água da
bacia. Dentro do programa CAB foram plantadas mais de 24 milhões de
árvores ao redor da represa.
As iniciativas seguem uma metodologia que também é fundamental e que
ampliou a atuação para toda a bacia afetada, “porque a natureza se
organiza por bacias”, destacou Friedrich. O modelo se fundamenta na
responsabilidade compartilhada, envolvendo todos os atores locais, desde
órgãos públicos e privados até a sociedade civil e as universidades, e
na participação comunitária, em uma espécie de “democracia direta”.
Para isso foram formados comitês gestores nos 29 municípios, que
incluem, em média, 57 representantes de variados setores, após numerosas
reuniões de sensibilização e discussão dos problemas. Os chamados
Pactos das Águas, que são compromissos comunitários assinados com
cerimônia, impulsionam o desenho e a execução coletiva de planos e
projetos.
Essas iniciativas traçam um bom caminho, mas estão longe de redimir a
dívida social de Itaipu, segundo Aluizio Palmar, fundador do Centro de
Direitos Humanos e Memória Popular e ex-secretário de Meio Ambiente e
Comunicação de Foz do Iguaçu, município brasileiro onde está instalada a
hidrelétrica binacional.
A construção do megaprojeto, entre 1975 e 1983, deslocou famílias
camponesas, que muitas vezes careciam de títulos de propriedade para
obter indenizações, e multiplicou as favelas e os índices de violência
em Foz do Iguaçu, recordou Palmar. As compensações financeiras
beneficiam principalmente as prefeituras, que as usam em sedes de luxo e
atrações turísticas e quase nada destinam para atender as necessidades
da população, lamentou.
De todo modo, o quadro de Itaipu contrasta com o de outras bacias
brasileiras, especialmente a do rio São Francisco, cuja revitalização é
um clamor nacional e que conta com um incipiente programa, coordenado
pelo Ministério do Meio Ambiente. Cinco grandes hidrelétricas, com
potência conjunta de 10.827 megawatts (77% de Itaipu), aproveitam suas
cada dia mais escassas águas no interior do nordeste brasileiro.
Seu maior trecho cruza esta região semiárida e, além das secas, o São
Francisco sofre sedimentação e contaminação por atividades humanas,
como o desmatamento de suas margens, lançamento de esgoto urbano não
tratado e vários projetos agrícolas irrigados com suas águas.
Fonte: Envolverde/IPS
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