No dia 25/5, a nova legislação florestal (Lei 12.651/2012) completará
dois anos de existência. Resultado de um dos mais polêmicos e intensos
debates públicos sobre temas ambientais da história recente do país, a
lei foi apresentada oficialmente à sociedade como uma troca: se por um
lado, passou uma borracha sobre milhões de hectares de passivos
ambientais, diminuindo a proteção legal a milhares de quilômetros de
rios, encostas, manguezais e outras áreas ambientalmente sensíveis, por
outro, ela traria novas ferramentas para fazer com que a lei finalmente
“pegasse”. Ou seja, segundo essa visão, estaríamos trocando uma lei com
mais proteção, mas que não funcionava, por uma lei com menos proteção,
mas que funcionará.
As “novidades” da lei são basicamente duas: a nacionalização do
Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a previsão de incentivos econômicos à
restauração e conservação ambiental, o que efetivamente nunca existiu no
país.
Uma das razões centrais pelas quais o Código Florestal de 1965 (e o
de 1934 também) teve pouco sucesso enquanto política de indução à
conservação ambiental em imóveis rurais (foram milhões de hectares de
desmatamentos ilegais durante sua vigência) é que, em boa parte do
tempo, foi vantajoso desrespeitá-lo. Por um lado, a fiscalização era
praticamente nula e as medidas punitivas totalmente ineficientes, por
outro havia um conjunto de políticas públicas que induziam o produtor a
adotar ações contrárias a seus objetivos.
A lei florestal dizia que era
proibido derrubar as matas ciliares, mas o programa Provárzeas oferecia
financiamento subsidiado para que o agricultor o fizesse. A lei exigia
que o produtor mantivesse 20% da vegetação nativa para manter um mínimo
de equilíbrio no meio ambiente regional, mas o banco valorizava mais as
áreas já desmatadas – não importa se ilegalmente – quando ia avaliar o
pedido de crédito rural.
As muitas décadas de incongruência entre políticas cobraram seu
preço, tanto privado quanto público. Do ponto de vista privado, são
centenas de milhares de produtores rurais que acumularam passivos
ambientais, para cuja resolução eles terão de colocar a mão no bolso e
despender recursos que prefeririam utilizar em outras finalidades. Do
ponto de vista público, são milhares de pequenos rios e nascentes em
processo de morte lenta, imensas regiões que já não têm praticamente
nenhuma vegetação nativa para manter serviços ambientais mínimos, como a
manutenção de água no ambiente após o fim das chuvas. Levantamento
feito pelo ISA há dez anos no sistema Cantareira, que hoje é alvo de
tanta atenção pública, indicava que a bacia hidrográfica inteira tinha
apenas 21% de florestas preservadas, e mesmo assim concentradas em
alguns bolsões de áreas íngremes e impróprias para agricultura. Não é de
se espantar que, numa área de manancial, tenhamos problemas com a água,
o que as alterações climáticas só fazem agravar.
Medidas concretas
Portanto, para reverter essa situação é necessário mais do que
simples boas intenções. É fundamental inverter a relação custo-benefício
privada, criando medidas concretas que sinalizem ao produtor que, do
ponto de vista econômico (além do ético e legal), é melhor, ou é menos
desvantajoso, cumprir a lei florestal do que apostar contra ela.
Infelizmente, às vésperas da nova lei florestal completar dois anos, e
apesar das muitas promessas em contrário, o cenário continua o mesmo.
Ao anistiar grande parte do passivo historicamente acumulado, a lei
premiou aqueles que estavam ilegais e, portanto, emitiu um sinal à
sociedade de que infringi-la não é tão grave assim. Tanto que o próprio
Ministério da Agricultura está abertamente defendendo que um “jeitinho”
para diminuir a obrigação de recuperação ambiental dos grandes
produtores se torne regra oficial. Por outro lado, o capítulo de
estímulos econômicos à conservação é, na prática, uma obra literária.
Não tem nenhum efeito concreto imediato, sendo, em si, uma mera carta de
intenções, dependente da vontade política do governo federal e dos
estados para se transmutar efetivamente num pacote de medidas de indução
à conservação.
O momento ideal para transformar intenção em ação seria este primeiro
semestre de 2014, quando muito provavelmente, por decurso de prazo,
começará a funcionar o CAR. Se não houver nenhum tipo de apoio efetivo à
restauração e conservação florestal, a regularização ambiental será
meramente formal e o cadastro uma simples burocracia, incapaz de induzir
uma maior proteção às florestas existentes em terras privadas. Isso é o
que já está ocorrendo nos estados que há mais tempo trabalham com esse
instrumento, o Pará e o Mato Grosso.
Desmatamento
Análise feita pelo laboratório de geoprocessamento do ISA dos dados
de desmatamento 2012/2013 aponta que 46% do desmatamento ocorrido na
bacia do Xingu (PA) ocorreu dentro de imóveis inseridos no CAR.
Um
exemplo gritante é São Félix do Xingu, que tem cerca de 80% do
território já cadastrado (http://bit.ly/ORQbTt)
e no qual 83% do desmatamento ocorreu dentro de imóveis inseridos no
CAR. Em Gaúcha do Norte (MT), 64% dos 2.342 hectares desmatados no
período estão em imóveis com CAR. Isso demonstra que, no mínimo, o
instrumento não vem servindo para atingir a finalidade para a qual foi
criado, qual seja, coibir o desmatamento em imóveis “monitorados”.
O CAR, portanto, pode ser uma poderosa ferramenta de gestão
ambiental, mas desde que venha acompanhado de mecanismos de apoio à
regularização efetiva. Se for compreendido como um mero cadastro, que
serve para dar um “selo ambiental”, mas que não redunda em mudanças de
atitude do produtor, como vem ocorrendo no Mato Grosso e no Pará, ele
será não apenas ineficaz, mas poderá ser até mesmo pernicioso.
Infelizmente, não há, neste momento, nenhum indicador de que o
governo federal esteja empenhado em colocar na praça, junto com o CAR,
os prometidos e tão esperados incentivos econômicos à conservação. Na
Esplanada dos Ministérios, todos convergem na percepção de que
provavelmente nada ocorrerá, pois, se fosse para algo acontecer, a essa
altura do campeonato grupos de trabalho interministeriais já teriam que
estar finalizando seus planos, arredondando minutas de atos normativos e
preparando discursos de ministros. Mas eles sequer foram criados.
Uma ótima oportunidade para apresentar alguma novidade seria o
lançamento dos próximos planos Safra: o da agricultura familiar, que
deve ser lançado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), em
abril, e o Plano Agrícola e Pecuário, a ser lançado pelo Ministério da
Agricultura e Pecuária (Mapa), em junho. Se um problema fundamental de
eficácia da lei florestal sempre foi o seu conflito com as políticas de
apoio à produção agropecuária, por que não mudar o jogo e transformá-las
em aliadas?
Um caminho possível seria utilizar essas políticas para premiar
aqueles produtores que estiverem conservando ou recuperando
adequadamente as áreas protegidas de seus imóveis. Se a nova lei premiou
a ilegalidade, é dever moral (e jurídico) do Estado brasileiro agora
fazer o contrário, amenizando e invertendo essa péssima sinalização.
Se houver vontade política, já existem propostas concretas para serem
analisadas. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao
MAPA, apresentou ainda no primeiro semestre de 2013 uma proposta muito
interessante: a de que o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a
Política de Garantia de Preço Mínimo (PGPM) – dois programas por ela
operados – passem a remunerar melhor os produtores de alimentos que
comprovem ter suas áreas de preservação e reserva legal devidamente
conservadas, ou seja, sem as famigeradas “áreas rurais consolidadas”.
Seria uma forma bastante concreta de reconhecer e valorizar o serviço
ambiental prestado por esses produtores. Hoje, o PAA compra alimentos de
mais de 180 mil famílias de pequenos agricultores e tem um orçamento
anual de quase R$ 1 bilhão. É pouco diante do total de agricultores
familiares, mas sem sombra de dúvida seria um ótimo começo.
Crédito
Outra ideia é utilizar o crédito rural como indutor da conservação. A
partir do Plano Safra 2013/2014, aqueles produtores que estiverem no
CAR e/ou comprovarem a existência física de suas áreas de preservação
permanente e de reserva legal podem aumentar em 15% seu limite de
empréstimo. É positivo, mas ainda muito pouco. É possível aumentar essa
premiação, concedendo juros mais baratos aos produtores que comprovem
ter conservado suas florestas. Isso sem falar na urgência de se cortar
ou direcionar melhor o crédito que hoje é utilizado para atividades que
promovem o desmatamento.
Há muitas outras propostas rodando as mesas dos médios escalões dos
ministérios e afins, como é o caso do Programa de Aquisição de Mudas e
Sementes Florestais (PASEM), que permite ao Poder Público adquirir
sementes e mudas florestais de agricultores familiares para distribuir e
fomentar a restauração florestal. Mas ainda nada foi concretizado. Por
pura ausência de interesse do Palácio do Planalto e de liderança do
Ministério do Meio Ambiente nesse aspecto.
Caminhamos, assim, para a edição de um ato incompleto. Mesmo que o
CAR passe a funcionar nacionalmente neste semestre, o que ainda é
incerto, ele atrairá principalmente aqueles que querem se ver livres de
suas dívidas ambientais sem muito trabalho. Sem políticas de apoio e
indução, poucos se encorajarão a plantar uma árvore a mais do que o
mínimo necessário. Se, como ocorre no Mato Grosso e Pará, tampouco
houver monitoramento, sequer o mínimo é provável que seja feito.
Fonte: Instituto Socioambiental.
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