Políticas antidiscriminatórias vão muito além de reparar
injustiças. Libertam o país de laços que nos prendem a segregação,
violência e privilégios.
A importância histórica de
certos fatos não é compreendida de imediato pelos que os testemunham. A
decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), que no dia 26 de
abril derrotou, por onze votos a zero, a tentativa de anular as cotas
para negros nas universidades, é, provavelmente, um deles – por pelo
menos dois motivos.
Primeiro, a rapidez com que foram
superadas as visões mais preconceituosas sobre o tema. Há cerca de cinco
anos, quando as políticas de reserva de vagas começaram a ser adotadas,
um coro de condenações e desprezo erguia-se contra elas, na velha mídia
– e não só lá. Nos jornais e TVs, “intelectuais” como Ali Kamel e
Demétrio Magnoli tinham todo espaço para afirmar que as novas medidas
iriam introduzir… racismo e discriminação no Brasil! A oposição
espalhava-se pela classe média e a agressividade contra as cotas atingia
(embora minoritária) as próprias universidades públicas. Em muito pouco
tempo, porém, estas manifestações de superficialidade e histeria foram
se dissipando. O conjunto de fatores que provocou a mudança inclui os
expressivos resultados acadêmicos alcançados pelos cotistas, a
emergência das periferias como sujeito social e político ativo e
influente, e o declínio dos antigos “formadores de opinião” – classe
média e mídia conservadoras em primeiro lugar.
O segundo motivo é analisado em detalhes, no texto abaixo, por um mestre. Autor, entre outros, de O Trato dos Viventes e Introdução ao Brasil – um banquete nos trópicos,
organizador do segundo volume da História da Vida Privada no Brasil,
Luiz Felipe Alencastro é um dos autores brilhantes da historiografia
brasileira contemporânea. Um dos focos de seus estudos são,
precisamente, as relações entre Brasil e África e como elas marcaram o
país, desde a Colônia até o presente.
Em março de 2010,
Alencastro foi convidado a depor, numa das audiências públicas que o STF
promoveu sobre as cotas. Sintética, erudita e elegante, sua intervenção
destaca dois aspectos cruciais: a) a discriminação dos afrodescendentes
está na raiz de fenômenos que deformam nossa sociedade até hoje – entre
eles, impunidade, violência policial e negação dos direitos e da
cidadania; b) os avanços materiais e culturais vividos no Século 20 não
foram capazes de superar esta nódoa. Um século depois de abolida a
escravidão, as estatísticas demonstram que o abismo de desigualdade
entre brancos e negros não se fecha por si mesmo.
Uma
terceira conclusão, natural, é negar o fatalismo. Os seres humanos não
estão condenados a se submeter às heranças que infelicitam seu presente,
nem a esperar que forças mágicas (o mercado?) as corrijam. É possível
construir agora as políticas das transformação. As cotas são um caminho
real. Os que as negam o fazem sob argumentos risíveis, que disfarçam
muito mal a defesa de seus privilégios. A transcrição do depoimento de
Alencastro vem a seguir. (A.M.)
No presente ano de 2010, os
brasileiros afrodescendentes, os cidadãos que se autodefinem como pretos
e pardos no recenseamento nacional, passam a formar a maioria da
população do país. A partir de agora, na conceituação consolidada em
décadas de pesquisas e de análises metodológicas do IBGE, mais da metade
dos brasileiros é negra.
Esta mudança vai muito além da
demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado, sobre quem
somos e de onde viemos, e traz também desafios para o nosso futuro.
Minha
fala tentará juntar os dois aspectos do problema, partindo de um resumo
histórico para chegar à atualidade e ao julgamento que nos ocupa. Os
ensinamentos sobre nosso passado, referem-se à densa presença da
população negra na formação do povo brasileiro. Todos nós sabemos que
esta presença originou-se e desenvolveu-se na violência. Contudo, a
extensão e o impacto do escravismo não tem sido suficientemente
sublinhada. A petição inicial de ADPF (Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, semelhante a Ação Direta de Inconstitucionalidade,
ver Wikipedia) apresentada pelo DEM a esta Corte fala genericamente
sobre “o racismo e a opção pela escravidão negra” (pp. 37-40), sem
considerar a especificidade do escravismo em nosso país.
Na
realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga
escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos
deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de cinco milhões)
vieram para o território brasileiro num período de três séculos
(1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados
Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre
1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor – perto de 560 mil
africanos – ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlântico(1). No
final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político
americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante
mais tempo a escravidão.
Durante estes três séculos, vieram para
este lado do Atlântico milhões de africanos que, em meio à miséria e ao
sofrimento, tiveram coragem e esperança para constituir as famílias e as
culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro.
Arrancados para sempre de suas famílias, de sua aldeia, de seu
continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros e, em
seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os trouxeram
acorrentados em navios arvorando o auriverde pendão de nossa terra, como
narram estrofes menos lembradas do poema de Castro Alves.
No
Século 19, o Império do Brasil aparece ainda como a única nação
independente que praticava o tráfico negreiro em larga escala. Alvo da
pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos
passou a ser proscrito por uma rede de tratados internacionais que a
Inglaterra teceu no Atlântico(2).
O tratado anglo-português de
1818 vetava o tráfico ao norte do Equador. Na sequência do tratado
anglo-brasileiro de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831, proibiu a
totalidade do comércio atlântico de africanos no Brasil.
Entretanto,
50 mil africanos oriundos do norte do Equador são ilegalmente
desembarcados entre 1818 e 1831, e 710 mil indivíduos, vindos de todas
as partes da África, são trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de
tráfico clandestino. Ora, da mesma forma que o tratado de 1818, a lei de
1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no país após
a proibição. Em consequência, os alegados proprietários desses
indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas
sanções do Artigo 179 do “Código Criminal”, de 1830, que punia o ato de
“reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua
liberdade”. A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena
pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano
sequestrado para qualquer porto da África. Tais penalidades são
reiteradas no Artigo 4° da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei Eusébio
de Queirós, que acabou definitivamente com o tráfico negreiro.
Porém,
na década de 1850, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores
culpados do crime de sequestro, mas deixou livre curso ao crime
correlato, a escravização de pessoas livres(3). De golpe, os 760 mil
africanos desembarcados até 1856, e a totalidade de seus descendentes,
continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888(4). Para
que não estourassem rebeliões de escravos e de gente ilegalmente
escravizada, para que a ilegalidade da posse de cada senhor, de cada
sequestrador, não se transformasse em insegurança coletiva dos
proprietários, de seus sócios e credores, abalando todo o país, era
preciso que vigorasse um conluio geral, um pacto implícito em favor da
violação da lei. Um pacto fundado nos “interesses coletivos da
sociedade”, como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça, Nabuco de
Araújo, pai de Joaquim Nabuco.
O tema subjaz aos debates da época.
O próprio Joaquim Nabuco, que está sendo homenageado neste ano do
centenário de sua morte, escrevia com todas as letras em O Abolicionismo
(1883): “Durante cinquenta anos a grande maioria da propriedade escrava
foi possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomados
coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a
legalidade daquela propriedade, tomada também em massa”(5).
Tal
“tribunal escrupuloso” jamais instaurou-se nas cortes judiciárias, nem
tampouco na historiografia do país. Tirante as ações impetradas por um
certo número de advogados e magistrados abolicionistas, o assunto
permaneceu encoberto na época e foi praticamente ignorado pelas gerações
seguintes.
Resta que este crime coletivo guarda um significado
dramático: ao arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no
Brasil a partir de 1818 – e todos os seus descendentes – foram mantidos
na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de
indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima,
a escravidão do Império era ainda, primeiro e sobretudo, ilegal. Como
escrevi, tenho para mim que este pacto dos sequestradores constitui o
pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira(6).
Firmava-se
duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca
nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a
esta Suprema Corte. Consequentemente, não são só os negros brasileiros
que pagam o preço da herança escravista.
Outra deformidade gerada
pelos “males que a escravidão criou”, para retomar uma expressão de
Joaquim Nabuco, refere-se à violência policial.
Para expor o
assunto, volto ao Século 19, abordando um ponto da história do direito
penal que os ministros desta Corte conhecem bem e que peço a permissão
para relembrar.
Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao state building,
à organização das instituições nacionais. Houve, assim, uma
modernização do escravismo para adequá-lo ao direito positivo e às novas
normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e as liberdades
públicas. Entre as múltiplas contradições engendradas por esta situação,
uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinquente sem
encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que
cumpria pena de prisão?
Para solucionar o problema, o quadro legal
foi definido em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu,
em seu Artigo 179, a extinção das punições físicas constantes nas
aplicações penais portuguesas. “Desde já ficam abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”; a
Constituição também prescrevia: “as cadeias serão seguras, limpas e bem
arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas
circunstâncias e natureza de seus crimes”.
Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.
Num
segundo tempo, o Código Criminal de 1830 tratou especificamente da
prisão dos escravos, os quais representavam uma forte proporção de
habitantes do Império. No seu Artigo 60, o Código reatualiza a pena de
tortura. “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital
ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será
entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo
tempo e maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na
sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de 50”. Com o açoite,
com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o
dilema.
Longe de restringir-se ao campo, a escravidão também se
arraigava nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110 mil
escravos entre seus 266 mil habitantes, reunindo a maior concentração
urbana de escravos da época moderna. Neste quadro social, a questão da
segurança pública e da criminalidade assumia um viés específico(7). De
maneira mais eficaz que a prisão, o terror, a ameaça do açoite em
público, servia para intimidar os escravos.
Oficializada até o
final do Império, esta prática punitiva estendeu-se às camadas
desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto
com a privatização da justiça efetuada no campo pelos fazendeiros, tais
procedimentos travaram o advento de uma política de segurança pública
fundada nos princípios da liberdade individual e dos direitos humanos.
Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta diretamente o estatuto da cidadania.
É
sabido que nas eleições censitárias de dois graus ocorrendo no Império,
até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros e mulatos
alforriados, podiam ser votantes, isto é, eleitores de primeiro grau,
que elegiam eleitores de 2° grau (cerca de 20 mil homens, em 1870), os
quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram
suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o voto dos analfabetos
foi vetado. Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava
criar um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos
libertos. Gerou-se um estatuto de infracidadania que perdurou até 1985,
quando foi autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos analfabetos
brasileiros, brancos e negros, foi atingido(8). Mas a exclusão política
foi mais impactante na população negra, onde o analfabetismo registrava,
e continua registrando, taxas proporcionalmente bem mais altas do que
entre os brancos(9).
Pelos motivos apontados acima, os
ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas
universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema
político de nosso país. Nascidas no Século 19, a partir da impunidade
garantida aos proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da
violência e das torturas infligidas aos escravos e da infracidadania
reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo
submergiram o país inteiro.
Por isso, agindo em sentido inverso, a
redução das discriminações que ainda pesam sobre os afro-brasileiros –
hoje majoritários no seio da população – consolidará nossa democracia.
Portanto,
não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a
quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma
comunidade específica, como foi o caso, em boa medida, nos memoráveis
julgamentos desta Corte sobre a demarcação das terras indígenas. No
presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre
a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da
nação. Tais são os desafios que as cotas raciais universitárias colocam
ao nosso presente e ao nosso futuro.
Atacando as cotas
universitárias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto 3 o seguinte título “o
perigo da importação de modelos: os exemplos de Ruanda e dos Estados
Unidos da América” (pps. 41-43). Trata-se de uma comparação absurda no
primeiro caso e inepta no segundo.
Qual o paralelo entre o Brasil e
Ruanda, que alcançou a independência apenas em 1962 e viu-se envolvido,
desde 1990, numa conflagração generalizada que os especialistas
denominam a “primeira guerra mundial africana”, implicando também
Burundi, Uganda, Angola, Congo Kinsasha e Zimbábue, e que culminou, em
1994, com o genocídio de quase um milhão de tutsis e milhares de hutus
ruandenses?
Na comparação com os Estados Unidos, a alegação é
inepta por duas razões. Primeiro, os Estados Unidos são a mais antiga
democracia do mundo e servem de exemplo a instituições que consolidaram o
sistema político no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF – vosso STF –
são calcados no modelo americano. Não há nada de “perigoso” na
importação de práticas americanas que possam reforçar nossa democracia. A
segunda razão da inépcia reside no fato de que o movimento negro e a
defesa dos direitos dos ex-escravos e afrodescendentes tem, como ficou
dito acima, raízes profundas na história nacional. Desde o Século 19,
magistrados e advogados brancos e negros têm tido um papel fundamental
nestas reivindicações.
Assim, ao contrário do que se tem dito e
escrito, a discussão relançada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades
raciais é muito mais o resultado da atualização das estatísticas
sociais brasileiras, num contexto de lutas democráticas contra a
ditadura, do que uma propalada “americanização” do debate sobre a
discriminação racial em nosso país. Aliás, foram estas mesmas
circunstâncias que suscitaram, na mesma época, os questionamentos sobre a
distribuição da renda no quadro do alegado “milagre econômico”. Havia,
até a realização da primeira PNAD incluindo o critério cor, em 1976, um
grande desconhecimento sobre a evolução demográfica e social dos
afrodescendentes.
De fato, no Censo de 1950, as estatísticas sobre
cor eram limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no
Censo de 1970 elas eram inexistentes. Este longo período de eclipse
estatística facilitou a difusão da ideologia da “democracia racial
brasileira”, que apregoava a inexistência de discriminação racial no
país. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999 e os Censos de
1980, 1991 e 2000, incluíram o critério cor. Constatou-se, então, que no
decurso de três décadas, a desigualdade racial permanecia no quadro de
uma sociedade mais urbanizada, mais educada e com muito maior renda do
que em 1940 e 1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial
tinha um caráter estrutural que não se reduzia com progresso econômico e
social do país. Daí o adensamento das reivindicações da comunidade
negra, apoiadas por vários partidos políticos e por boa parte dos
movimentos sociais.
Nesta perspectiva, cabe lembrar que a
democracia, a prática democrática, consiste num processo dinâmico,
reformado e completado ao longo das décadas pelos legisladores
brasileiros, em resposta às aspirações da sociedade e às iniciativas de
países pioneiros. Foi somente em 1932 – ainda assim, com as conhecidas
restrições suprimidas em 1946 – que o voto feminino instaurou-se no
Brasil. Na época, os setores tradicionalistas alegaram que a capacitação
política das mulheres ia dividir as famílias e perturbar a
tranquilidade de nação. Pouco a pouco, normas consensuais que impediam a
plena cidadania e a realização profissional das mulheres foram sendo
reduzidas, segundo o preceito, aplicável também na questão racial, de
que se deve tratar de maneira desigual o problema gerado por uma
situação desigual.
Para além do caso da política de cotas da UNB, o que está em pauta neste julgamento são, a meu ver, duas questões essenciais.
A
primeira é a seguinte: malgrado a inexistência de um quadro legal
discriminatório, a população afro-brasileira é discriminada nos dias de
hoje?
A resposta está retratada nas creches, nas ruas, nas
escolas, nas universidades, nas cadeias, nos laudos dos IMLs de todo o
Brasil. Não me cabe aqui entrar na análise de estatísticas raciais,
sociais e econômicas que serão abordadas por diversos especialistas no
âmbito desta Audiência Pública. Observo, entretanto, que a ADPF
apresentada pelo DEM, na parte intitulada “A manipulação dos indicadores
sociais envolvendo a raça” (pp. 54-59), alinha algumas cifras e cita
como única fonte analítica o livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como
é sabido, não é versado no estudo das estatísticas do IBGE, do Ipea, da
ONU e das incontáveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que
demonstram, maciçamente, a existência de discriminação racial no Brasil.
Daí
decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois tempos. O
sistema de promoção social posto em prática desde o final da escravidão
poderá eliminar as desigualdades que cercam os afro-brasileiros? A
expansão do sistema de bolsas e de cotas pelo critério social provocará
uma redução destas desigualdades?
Os dados das PNAD organizados
pelo Ipea mostram, ao contrário, que as disparidades se mantêm ao longo
da última década. Mais ainda, a entrada no ensino superior exacerba a
desigualdade racial no Brasil.
Dessa forma, no ensino fundamental
(de sete a 14 anos), a diferença entre brancos e negros começou a
diminuir a partir de 1999 e, em 2008, a taxa de frequência entre os dois
grupos é praticamente a mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente.
No ensino médio (de 15 a 17 anos) há uma diferença quase constante desde
entre 1992 e 2008. Neste último ano, foram registrados 61% de alunos
brancos e 42% de alunos negros desta mesma faixa etária. Porém, no
ensino superior a diferença entre os dois grupos se escancara. Em 2008,
nas faixas etárias de brancos maiores de 18 anos de idade, havia 20,5%
de estudantes universitários e nas faixas etárias de negros maiores de
18 anos, só 7,7% de estudantes universitários(10). Patenteia-se que o
acesso ao ensino superior constitui um gargalo incontornável para a
ascensão social dos negros brasileiros.
Por todas estas razões, reafirmo minha adesão ao sistema de cotas raciais aplicado pela Universidade de Brasília.
Penso
que seria uma simplificação apresentar a discussão sobre as cotas
raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o governo e a
oposição ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito de 1993, sobre o
presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem atravessa as linhas
partidárias e ideológicas. Aliás, as primeiras medidas de política
afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido,
pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
Como deixei claro,
utilizei vários estudos do Ipea para embasar meus argumentos. Ora, tanto
o presidente do Ipea no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o
professor Roberto Borges Martins, como o presidente do Ipea no segundo
governo Lula, o professor Márcio Porchman, colegas por quem tenho
respeito e admiração, coordenaram vários estudos sobre a discriminação
racial no Brasil nos dias de hoje e são ambos favoráveis às políticas
afirmativas e às políticas de cotas raciais.
A existência de
alianças transversais deve nos conduzir, mesmo num ano de eleições, a um
debate menos ideologizado, onde os argumentos de uns e de outros possam
ser analisados a fim de contribuir para a superação da desigualdade
racial que pesa sobre os negros e a democracia brasileira.
Notas
(1) Ver o Database da Universidade de Harvard acessível no site.
(2)
Demonstrando um grande desconhecimento da história pátria e
superficialidade em sua argumentação, a petição do DEM afirma na página
35: “Por que não direcionamos a Portugal e Inglaterra a indenização a
ser devida aos afrodescendentes, já que foram os portugueses e os
ingleses que organizaram o tráfico de escravos e a escravidão no
Brasil?”. Como é amplamente conhecido, os ingleses não tiveram
participação no escravismo brasileiro, visto que o tráfico negreiro
constituía-se como um monopólio português, com ativa participação
brasileira no Século 19. Bem ao contrário, por razões que não cabe
desenvolver neste texto, a Inglaterra teve um papel decisivo na extinção
do tráfico negreiro para o Brasil
(3) A. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico, Jurídico, Social
(1867), Vozes, Petrópolis, RJ, 1976, 2 vols., v. 1, pp. 201-222. Numa
mensagem confidencial ao presidente da província de São Paulo, em 1854,
Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, invoca “os interesses coletivos
da sociedade”, para não aplicar a lei de 1831, prevendo a liberdade dos
africanos introduzidos após esta data. Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império (1897-1899), Topbooks, Rio de Janeiro, 1997, 2 vols., v. 1, p. 229, n. 6
(4) Beatriz
G. Mamigonian, comunicação no seminário do Centre d’Études du Brésil et
de l’Atlantique Sud, Université de Paris IV Sorbonne, 21/11/2006;
D.Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Oxford University Press, Oxford, U.K. 1989, appendix A, pp. 234-244.
(5) Joaquim Nabuco, O Abolicionismo
(1883), ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1977, pp 115-120, 189. Quinze anos
depois, confirmando a importância primordial do tráfico de africanos e
da reprodução desterritorializada da produção escravista, Nabuco afirma
que foi mais fácil abolir a escravidão em 1888, do que fazer cumprir a
lei de 1831, id., Um Estadista do Império (1897-1899), Rio de Janeiro, Topbooks,1997, 2 vols., v. 1, p. 228.
(6) L.F. de Alencastro, “A desmemória e o recalque do crime na política brasileira”, in Adauto Novaes, O Esquecimento da Política, Agir Editora, Rio de Janeiro, 2007, pp. 321-334.
(7)
Luiz Felipe de Alencastro, “Proletários e Escravos: imigrantes
portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro 1850-1870”, in Novos Estudos Cebrap, n. 21, 1988, pp. 30-56;
(8) Elza Berquó e L.F. de Alencastro, “A Emergência do Voto Negro”, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, nº33, 1992, pp.77-88.
(9)
O censo de 1980 mostrava que o índice de indivíduos maiores de cinco
anos “sem instrução ou com menos de um ano de instrução” era de 47,3%
entre os pretos, 47,6% entre os pardos e 25,1% entre os brancos. A
desproporção reduziu-se em seguida, mas não tem se modificado nos
últimos 20 anos. Segundo as PNADs, em 1992, verificava-se que, na
população maior de 15 anos, os brancos analfabetos representavam 4% e os
negros 6,1%, e em 2008 as taxas eram, respectivamente, de 6,5% e 8,3%. O
aumento das taxas de analfabetos provém, em boa parte, do fato que, a
partir de 2004, a PNAD passa a incorporar a população rural de Rondônia,
Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Dados extraídos das tabelas do
Ipea.
(10) Dados fornecidos pelo pesquisador do Ipea, Mario Lisboa Theodoro, que também participa desta Audiência Pública.
Luís Felipe Alencastro é cientista político e historiador, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne.
Fonte: Outras Palavras.
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